sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

 

O que é a democracia liberal? – uma resposta breve

Se quiséssemos sintetizar numa expressão breve o que é a democracia liberal poderíamos dizer: é um sistema político que através do sufrágio universal consegue eleger governantes que representam os interesses da elite dominante, com o apoio do povo expresso nas urnas  Isto acontece porque o povo, a maioria dos cidadãos, é o público alvo de uma comunicação social – propriedade dessa mesma elite - que tem por principal objetivo desinformar as audiências, manipulando alguns dados informativos, omitindo outros, divulgando ‘informações’ que não verificou previamente, enfim, as técnicas são muitas e bem conhecidas dos ‘jornalistas’ de serviço que garantem o emprego, fazendo ‘bem’ o seu trabalho.

Daqui se segue que parece muito plausível concordar com as palavras de Raúl Zibechi quando manifesta:

“… a convicção de que não existe algo chamado democracia, se é que alguma vez existiu. A partir do momento em que as opiniões e vontades das pessoas são moldadas e manipuladas por gigantescas maquinarias que escapam de qualquer controle que não seja o das classes dominantes, entrar no jogo eleitoral não tem futuro.” Raúl Zibechi, 2023

De facto, o melhor será descredibilizar o jogo, denunciando a viciação das regras e não participando nele, a fim de não legitimar o que não é legitimável. 

sábado, 14 de outubro de 2023

 

Capitalismo e mercado – riscos e perplexidades

O modo capitalista de produção, centrado na propriedade privada dos meios de produção e na transformação do trabalho em mercadoria, visa o lucro como objetivo prioritário do capitalista.

Malgrado este último aspeto – lucro como objetivo prioritário - defende que o mercado, onde compradores e vendedores interagem, é o instrumento ideal para regular de modo espontâneo todo o processo produtivo; devendo para tal ser livre de interferências estranhas, nomeadamente da interferência e controlo do Estado - a liberdade do mercado é uma espécie de dogma. O pressuposto é que espontânea e livremente vendedores e compradores tomarão decisões que permitirão estabelecer de forma harmónica e equilibrada o valor de troca dos produtos apresentados, de acordo com a lei da oferta e da procura.

Segundo esta lei, o valor de troca do produto dependerá da quantidade disponível (oferta) e do maior ou menor interesse dos compradores em adquiri-lo (procura). Quer dizer, é o mercado que forma o preço e tal é defensável porque o mercado autorregula-se espontaneamente.

Através desta narrativa, que tem sido constantemente inculcada, o mercado é apresentado como uma instituição autónoma que corresponde a uma realidade universal e, sempre que se quer cercear as críticas aos rumos da economia, entra em ação. Assim, por exemplo, diz-se que o poder político não pode/deve controlar os preços dos produtos de primeira necessidade – tabelar preços – porque a resposta dos mercados a tal medida seria avassaladora. Diz-se por exemplo que o que deve condicionar a subida ou descida dos juros deve ser o funcionamento do mercado, não as necessidades das pessoas. E dizem-se muitas outras coisas …

Tudo se passa como se os mercados fossem extraterrestres e nada houvesse a fazer a não ser segui-los obedientemente, esconde-se desse modo que são em primeira e em última instância controlados por interesses de determinadas pessoas: banqueiros, grandes corporações, grandes proprietários fundiários, numa palavra, a elite económica dominante. O que se passa com o mercado no ramo dos bens de primeira necessidade, acima referido, ocorre do mesmo modo com os mercados financeiros que, sob o carimbo da autorregulação, sobem e baixam taxas de juros em conformidade com os interesses de grupos económicos e de conjunturas históricas e políticas, o que obviamente aponta no sentido da sua manipulação.

Por isso, de facto, tem de se admitir que o mercado aqui em referência não é uma realidade universal e intemporal, mas antes uma construção  histórica situada no tempo e no espaço, que se revela útil ao sistema capitalista porque, sob um nome respeitável, esconde interesses inconfessáveis. 


segunda-feira, 2 de outubro de 2023

 

Democracia liberal capitalista - uma contradição nos termos

A crítica às democracias liberais pode ser formulada através de um conjunto de perguntas retóricas - as tais que induzem de forma enfática a resposta.

Assim, por exemplo, pode bem perguntar-se se é possível considerar democráticos países:

- Que não investem em serviços públicos essenciais, tais como educação, saúde e segurança social;

- Em que a desigualdade e a injustiça social são gritantes;

- Nos quais os negócios dos privados prosperam escandalosamente enquanto a maioria da população se vê em sérias aflições para sobreviver;

- E cereja no topo do bolo, países nos quais os Media estão concentrados nas mãos de meia dúzia de corporações que constroem as narrativas de acordo com os interesses das elites dominantes.

A resposta parece óbvia, não podem: não são de facto democracias porque nestas governa o povo, no mínimo através de representantes que levam a sério o interesse deste e não o de meia dúzia de figurões – o povo é quem mais ordena, como dizia o poeta!

Por isto, na impossibilidade prática de mudar o nome, acrescentemos sempre: democracias liberais capitalistas; esta designação denuncia a farsa, na justa medida em que ela própria contém uma contradição nos termos. Até pelo modus faciendi, o capitalismo encontra-se nos antípodas da democracia, daí que uma democracia capitalista é um absurdo, um oxímoro, como dizem os mais eruditos…

Mas lamentavelmente nem todos se colocam essas questões, nem todos são bons em lógica e, como existem partidos políticos, eleições e representantes eleitos, etc. acabam por tomar as aparências por realidade, ou porque lhes dá jeito e apazigua as suas consciências, ou porque não percebem o embuste, ou porque, se percebem, já se resignaram e procuram o conforto do reino dos céus.

E assim vai o mundo!!!

domingo, 17 de setembro de 2023

 

Sobre o Movimento Woke e a Teoria Racial Crítica

Um dos aspetos do movimento Woke que mais enfurece o liberalismo e o conservadorismo cultural é o recurso e a divulgação dos princípios defendidos pela teoria racial critica, surgida nos Estados Unidos na década de oitenta do século passado e atualmente muito divulgada. Vejamos esses princípios, para de seguida concluirmos da sua ou não pertinência.

A Teoria racial crítica:

·        Identifica a população branca como privilegiada, alegando que a diferença racial sempre foi e continua a ser fonte de desigualdade social.

·        Defende que o racismo é sistémico e está na origem da opressão; que não é conjuntural, mas estrutural; ou seja, o racismo não é um preconceito que certos indivíduos manifestam, é algo bem mais profundo.

·        Considera que o racismo se manifesta na linguagem, nas ideias e nos comportamentos e práticas sociais; por exemplo, o facto de a população carcerária negra ser extremamente mais elevada que a branca é um sintoma de racismo existente na América.

·        Percebe a não discriminação como um verniz formal que não tem expressão na prática; as práticas continuam a ser discriminatórias: nas escolas, nos empregos, nas condenações criminais, etc.  

·        Conclui que aqueles que negam a supremacia branca ou o racismo sistémico e a discriminação devem ser considerados racistas; só negam estas realidades para que elas continuem a existir porque percebem que para as erradicar será preciso reconhecê-las primeiro e tomar em seguida as medidas necessárias.

Esta teoria, que encontra a diferença racial na origem da discriminação e desigualdade de tratamento a que os negros são sujeitos é suportada por forte evidência empírica e compete a quem não a aceitar o ónus da prova; todavia, há quem se lhe oponha e pretenda ver na origem dessa discriminação tão somente uma situação de inferioridade social dos negros em relaçao aos brancos: piores condições de habitação, de cuidados médicos, de escolarização. Mas esta resposta é falaciosa (beg de question) porque obriga a perguntar porque é que isso acontece, e não se encontra outra explicação a não ser o racismo sistémico que de facto desde sempre tem existido no país e que nunca foi seriamente encarado e contrariado a fim de se encontrarem soluções adequadas para o resolver.

Portanto dizer que esta teoria não deve ser ensinada nas escolas nem divulgada porque divide a sociedade norte americana e é elemento de desunião, bla bla bla, seria constrangedor se não fosse escandaloso! Todavia, grande parte da sociedade americana não vê o escândalo e culpa as vítimas por denunciarem o crime de que são vítimas. E não se pense que tal só acontece com a direita republicana mais ou menos extremista, também parte da esquerda democrática se sente desconfortável com o assunto e lá vai criticando o que designa de exageros e fanatismos. Um fenómeno lamentável a qualquer título.  


sábado, 16 de setembro de 2023

 Guerra cultural anti woke

Lutas antirracistas e anti sexistas, ou pelo menos algumas das suas manifestações, eram vistas até há pouco como casos exemplares de justiça social; todavia, mais recentemente, passaram a ser percebidas por alguns setores, que, digamos assim, ganharam coragem para ‘sair do armário’, como radicalismos perfeitamente despropositados e enquanto tal carentes de legitimidade. Esta reação coincide com o avanço da extrema direita a que estamos assistindo, estimulado pelas dificuldades que as democracias liberais estão a encontrar junto do eleitorado que tende a culpar os políticos e as políticas pelos problemas com que as pessoas se deparam no seu quotidiano.

É neste contexto que se situa a guerra cultural anti woke que mobiliza algumas camadas da sociedade e que de certa maneira funciona como uma manobra para desviar a atenção das pessoas atingindo alvos que podem funcionar como bodes expiatórios. Se indagarmos do extrato político e social dessas camadas confirmamos que maioritariamente estamos perante extratos conservadores, ligados ao pensamento de direita e de extrema direita, embora neste caso também inclua pessoas ligadas à esquerda liberal, eventualmente, agastadas com certas atitudes e posições que consideram excessivas e desproporcionadas.  

Para normalizar o racismo, o sexismo e outros tipos de discriminação é muito conveniente fazer passar a mensagem de que todos aqueles e aquelas que lutam contra estes fenómenos são anormais; desse modo e por contraposição, estes mesmos fenómenos passam a ser percebidos como normais. Continuar a usar linguagem que deprecia um povo de determinada raça ou grupo social ou continuar a objetificar as mulheres serão coisas inocentes e perfeitamente normais, só um anormal, destituído de senso comum e de sentido de humor nelas irá reparar.

Neste contexto esquece-se que o difícil não é ser racista ou sexista, o difícil é ser contra, ou seja, contrariar a tendência que temos para desenvolver uma mentalidade racista, sexista (e, em última análise, fascista), sobretudo, se estivermos do lado da barricada que sai, ou julga sair, beneficiada com essas posições. Por exemplo, os brancos pobres podem sentir que a sua autoimagem é positivamente reforçada pela existência de outros indivíduos que ainda ocupam um lugar mais baixo na escala social.

Se o objetivo é normalizar o racismo e outros tipos de discriminação negativa denunciando como anormais, porque extremistas, dogmáticos e fanáticos, aqueles que os denunciam, a estratégia consiste em procurar chamar a atenção para procedimentos de elementos do movimento Woke que, alegam, apontam para essa anormalidade. Nesse sentido, os críticos do movimento Woke acusam-no de dois pecados capitais: recorrer ao que designam de política do cancelamento e a medidas tendentes a coartar a liberdade de expressão de pensamento das pessoas que deles discordam; e assumem desse modo o papel de vítimas.

Todavia, quando, numa primeira abordagem, consulto o Google para me informar sobre a ideologia e cultura Woke, vejo inúmeras publicações que fazem uma avaliação negativa do movimento e não encontro praticamente nenhuma neutra e muito menos positiva. No mínimo é preocupante e parece mostrar que afinal quem está a ser cancelado são os representantes e defensores deste movimento e não os seus detratores. Acusam-no de ser uma espécie de veneno que está a destruir a sociedade americana e o Ocidente, mas, como é habitual, a argumentação em defesa de tal tese é fraca ou mesmo secundarizada, como se bastasse execrá-lo.

Um dos argumentos a que mais frequentemente recorrem consiste em acusar o movimento Woke de, sobretudo através das redes sociais, cancelar pessoas cujas palavras ou atos, por um qualquer motivo, são considerados politicamente incorretos; fragilizando desse modo o seu prestígio e influência. Mas, mesmo aceitando-se que tal seja verdade, se bem repararmos, estar-se-ia tão simplesmente a fazer aquilo que os críticos do movimento fizeram e continuam descaradamente a fazer. Com estes está tudo bem, mas com os negros? Com as mulheres e homens feministas? Com as minorias não heterossexuais? Como se atrevem?!

Portanto é legitimo deduzir que o objetivo do movimento anti woke é, como acima referido, normalizar o racismo e outras atitudes sociais discriminatórias, e desse nodo naturalizar as situações de dominação e opressão que passam pela desumanização do outro, do que é dominado e oprimido porque é inferior, e naturalmente precisa de tutela – o natural transforma-se assim em normativo, é o que deve ser, não o aceitar é ser anormal, é não seguir a norma.

Tudo isto para concluir que basicamente o movimento anti woke é um movimento reacionário, conservador na melhor das hipóteses - pretende congelar o passado para a ele retornar, mesmo se, entretanto, se tiver procedido a algum aggiornamento


domingo, 10 de setembro de 2023

 

Movimento WOKE - Algumas reflexões.  

O termo “woke”, cunhado na década de 30 do século passado e recuperado recentemente, aquando do assassinato pela polícia de Michael Brown, que catapultou para a ribalta o movimento “Black Lives Matter”, encontra-se intimamente associado ao conceito de justiça racial; designa um movimento ativista negro que acabou por abrigar também reivindicações de justiça social em sentido mais amplo, incluindo a luta anti sexista e a luta pelo reconhecimento LGTB.

‘Woke’ é um vocábulo que corresponde à forma pretérita  do verbo wake com o significado de acordar e que é traduzível por Acordei, no sentido de “tomei consciência”; fiquei alerta do … racismo profundo que impregna a sociedade norte americana, do sexismo e do preconceito contra outras orientações sexuais que não a heterossexual!

De facto, com os ataques violentos contra os negros pela Ku Klux Klan, organização supremacista branca terrorista, e com outras formas de violência que também atingem os outros grupos sociais atrás referidos, com a prevalência do preconceito como o atesta a violência policial extrema contra negros, ainda nos nossos dias, todo o cuidado é pouco e é preciso estar alerta, percebendo que os preconceitos raciais e sexuais se encontram impregnados nas estruturas da sociedade, constituem uma ameaça real e para serem erradicados tem de ser denunciados, de outra maneira manter-se-ão, pois  as próprias vítimas serão em simultâneo cúmplices.

Temos assim que o movimento woke é nas suas origens e fundamento um movimento político negro e isso é insuportável para os supremacistas brancos e para os nostálgicos do passado, que tudo fazem para o solapar.

 De facto, o movimento woke é alvo de ataques promovidos pela direita e sobretudo pela extrema direita, que paradoxal e desavergonhadamente o acusa de extremista, de radical e até de insano, com o objetivo de o descredibilizar.  Aqueles que o atacam fazem tábua rasa de toda uma memória de brutalidade extrema cometida precisamente por fações da direita contra a população negra, mesmo depois e na sequência da abolição da escravatura e no rescaldo da guerra da secessão (1861-1865).

Não vamos dizer que o movimento woke não cometa exageros, por vezes confundindo ‘alhos com bugalhos’, como se costuma dizer, mas o que são esses eventuais exageros quando comparados ao sofrimento de toda uma população infligido arbitrariamente, de forma tão brutal e durante tanto tempo? Estamos perante realidades incomensuráveis e só por ma fé se pode pretender ignorá-lo.

O movimento woke, enquanto movimento de luta e de resistência, é necessário, tem razão de existir, e é preciso ouvi-lo com a devida atenção e não o achincalhar porque tal atitude responde a propósitos inconfessáveis.

A extrema direita acusa este movimento de vários ‘pecados’, para mais justificadamente o derrubar. Vejamos então.

Ataca o movimento daquilo que designa de ‘marxismo cultural’, o que quer que isso seja; presumivelmente imagina-o como uma luta pela divulgação de ideias que mudariam a face da sociedade americana e a tornariam culturalmente recetiva à aceitação de uma estrutura económica e política comunista. Neste particular o ataque ao que designam por ‘teoria racial crítica’ é constante e tem por objetivo entre outras coisas evitar que nas escolas sejam revelados e abordados acontecimentos históricos representativos da opressão da população negra dos Estados Unidos. Quer dizer pretende-se preservar a narrativa dominante que, como qualquer pessoa dotada de honestidade intelectual mínima reconhece, é facciosa e enaltece as virtudes do vencedor a expensas da exposição de pretensos vícios e inferioridades do vencido.

Acusa-o ainda de  não respeitar a liberdade de expressão de pensamento, ao instaurar o que é politicamente correto e o que não o é, e ao promover o que chama de cultura do cancelamento em relaçao aos que não observam o politicamente correto; ignora-se assim  ostensivamente que a liberdade de expressão tem limites e que os discursos de ódio devem ser denunciados pelo menos quando expostos na esfera pública pois não são inofensivos,  bem ao contrário incitam à violência e ao terrorismo. A direita, e sobretudo a extrema direita, pretende continuar a usar, em nome da liberdade de expressão, que hipocritamente defende, linguagem ofensiva e discriminatória que alimenta o racismo e o sexismo estruturais persistentes na sociedade, como se tivesse todo o direito de o fazer, como se fosse algo normal e fosse antidemocrático impedi-lo. Ora devíamos ter memória histórica: normalizar o racismo e o sexismo, isto é tornar normal a expressão de sentimentos racistas e sexistas, é o primeiro degrau para garantir a persistência da supremacia branca e da dominação masculina; em contrapartida, pretender inculcar a ideia de que combater o racismo, o sexismo e fenómenos afins é algo anormal, promovido por extremistas e radicais, é procurar alimentar a ideia de que se está a atacar os homens brancos heterossexuais - as  novas vítimas do século XXI.

Assim, é legitimo concluir que, quando políticos e outros setores acusam o movimento woke de extremismo e de insanidade, estão, sem o dizerem diretamente, a expressar o preconceito racista que alimentam, e o eleitorado racista percebe-o de imediato e fideliza-se. É uma maneira, em minha opinião, infame de baterem naqueles que, às vezes desastradamente, é certo, procuram a justiça social que lhes continua a ser negada, e representa nítida falta de memória histórica do que o país fez aos negros e da reparação que tarda em lhes conceder.

A existência de um ativismo de resistência negra faz todo o sentido, se aceitarmos que a justiça social não é uma palavra vã.  Claro que nesta altura do campeonato já muito boa gente tem a cabeça feita pelo neoliberalismo – nos antípodas do marxismo cultural acima referido -  no sentido de nem sequer entender o conceito de justiça social pois apenas percebe que é: ‘cada um por si e Deus por todos’ – uma espécie de retorno contemporâneo ao estado de natureza que - julgava-se – teria ficado lá para trás!

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

 O capitalismo na fase neoliberal

A transição do capitalismo para a fase neoliberal ocorreu nas últimas décadas do seculo XX; essa transição, embora já anteriormente na forja, coincidiu com a implosão da União Soviética finalizada em 1991, que pôs termo ao mundo bipolar, e permitiu a  instauração de um mundo unipolar sob a hegemonia dos Estados Unidos da América.

 Com essa hegemonia, os norte americanos, mais do que nunca, conseguiram impor unilateralmente os seus interesses sobre as mais diversas regiões do globo. Um dos instrumentos de relevo para a prossecução dessa política foi a manutenção da Nato, seu braço armado, e sua expansão para leste, até às fronteiras da Rússia, coisa que parecia já não se justificar e que informalmente fora garantido que não ocorreria. Uma vez extinto o pacto de Varsóvia, o espectável seria que o pacto NATO lhe seguisse as pisadas. Mas tal não só não aconteceu como se aproveitou para lhe aumentar o alcance.

Curiosamente, ou não, a nova potência hegemónica, longe, de garantir a paz no mundo, estimulou, de forma indireta, e interveio diretamente em diferentes conflitos bélicos em diversas áreas do globo, dos quais os mais renomados pelos piores motivos foram:

·        O Afeganistão (finais de 2001), contra os talibãs, que anteriormente por motivos maquiavélicos tinha ajudado a florescer, quando os Russos invadiram este país;

·        O Iraque (2003), que foi invadido sob o pretexto de exportar a democracia para tais paragens, mesmo sem o beneplácito da ONU, e foi destruído e ‘saqueado’;

·        E a Síria (2014), de onde até hoje os E.U. continuam a rapinar o petróleo nas áreas sob sua ‘proteção’.

Mas também intervieram notoriamente em diversos países promovendo/respaldando golpes militares que derrubaram governos cujas políticas colidiam com os seus interesses; neste caso a América do sul foi a vitima mais causticada; de citar o golpe militar no Brasil em 1964 que impôs ao país uma ditadura militar; no Chile em 1973 que derrubou Salvador Allende, democraticamente eleito; na Argentina com o derrube de Isabel Péron, substituída por uma junta militar, golpe operado com o conhecimento prévio e o aval dos Estados Unidos. Estes golpes foram a porta de entrada do neoliberalismo nos respetivos países.

Por outro lado, e seguindo uma outra estratégia, o FMI prestou ajuda a países com dificuldades de endividamento, empolado pelas políticas fiscais norte-americanas de alta das taxas de juro dos empréstimos em dólares, que catapultaram as dívidas desses países para a ‘estratosfera’. A contrapartida a essas ajudas foi sempre a obrigatoriedade de adoção de medidas neoliberais tais como privatizações, mesmo em setores estratégicos, cortes nos gastos dos Estados em serviços sociais, e diminuição de direitos trabalhistas.

Curiosamente, o neoliberalismo, que emergira triunfante com a promessa de desenvolvimento económico, acabou por corresponder a um período de crises sucessivas do capitalismo, com início em meados da década de 70 do século passado - choque do petróleo - e com o ápice na crise do subprime de 2008 com epicentro nos Estados Unidos. Hoje, já com perspetiva histórica, podemos concluir que a acumulação capitalista que alimenta o sistema e seus beneficiários foi obtida desta vez, de forma perfeitamente nítida, através de guerras e golpes militares e da apropriação de recursos de países da periferia do sistema.

Quer dizer que no plano económico o neoliberalismo acabou por corresponder a um fracasso porque não encontrou instrumentos para desenvolver a economia e então acabou por operar transferência de recursos dos países pobres para os países ricos sem qualquer benefício para os povos dos primeiros e com benefícios muito discutíveis para os dos segundos, os quais, todavia, mesmo assim tiveram menos razões para se queixar do capitalismo e passaram a queixar-se, muito abstratamente, das suas próprias elites corruptas, e, mais concretamente, dos imigrantes, de grupos racializados e de outros grupos vulneráveis, isto é, os sacos de pancada do costume.

Assim, pode dizer-se que o capitalismo na fase neoliberal entrou num período recessivo que só conseguiu mascarar porque, por um lado, os Estados Unidos, a locomotiva do sistema, enveredaram por um caminho de guerras e golpes violentos constantes, visando a expolição das riquezas e recursos de outros países, invocando pretextos espúrios. Quer dizer substitui-se, melhor, complementou-se a exploração direta dos trabalhadores nos seus países de origem, pela exploração indireta através da promoção de guerras e respetiva apropriação de riquezas e recursos dos países derrotados. Por outro lado, aproveitando a era digital, procedeu-se a uma globalização capitalista deslocando a produção industrial para países periféricos de mão de obra mais barata e com legislação protetora de pessoas e ambiente de baixa intensidade, um outro processo de exploração e acumulação de capital.

Nos diferentes casos, se repararmos houve sempre exploração do trabalho e de quem trabalha que ou foi bucha para canhão ou viu as suas condições de vida agravadas porque no capitalismo não são os ricos que pagam as crises do sistema, arranjam sempre maneira de apresentar a fatura a outros, nomeadamente ao próprio Estado cuja intervenção em tempos ditos normais rejeitam, mas a que não tem pudor de recorrer quando se veem em apuros. 

Porem a criatividade neoliberal não ficou por aqui, e entrou-se também numa fase designada de capitalismo financeiro em que o próprio dinheiro se tornou uma mercadoria. Mais uma vez houve e há exploração direta e indireta dos trabalhadores que são convidados a endividar-se a fim de pagarem um produto que inicialmente custaria x por um valor que corresponde, acrescidos juros bancários, a 3 ou mais vezes x; criatividade não falta ao sistema para esfolar as pessoas, obrigando-as a viverem para trabalhar e não a trabalharem para viver – um verdadeiro absurdo, puro Ionesco.

Alem disso, nesta fase de capitalismo financeiro o dinheiro e os bancos, para além de financiarem a produção e o consumo, entram sobretudo num ciclo em que o dinheiro gera mais dinheiro através de movimentos especulativos sabiamente geridos por quem percebe da poda e manuseia papeis: as ações nas bolsas de valores que podem subir ou descer de maneira vertiginosa, ‘correrias’ essas desencadeadas por rumores, boatos, etc. um autêntico teatro de loucos…

Quer dizer, o centro da economia deixa de ser a produção de bens necessários à vida e existência humana, com todas as vicissitudes que conhecemos, e passa a ser a especulação do dinheiro que gera dinheiro. O que mostra bem como no centro da economia capitalista se encontra não a produção de riqueza, mas a acumulação, que aliás foi o seu ponto de partida e que acaba por ser, sob outra forma, o seu ponto de chegada; assim a acumulação capitalista, chamando os bois pelos nomes, é uma autêntica forma legalizada de gatunagem.

Na fase neoliberal do capitalismo uma outra inovação, chamemos-lhe tendência, seguida com maior ou menor zelo em diferentes países, foi atribuir ao Estado um papel menor na proteção dos direitos dos indivíduos - educação, saúde, segurança social - sob pretexto de garantir a liberdade individual e em simultâneo abrir ao capital privado a exploração de áreas de produção de serviços e respetivos lucros, frequentemente sob a alegação hipócrita de que o Estado não seria eficiente. No fundo mais uma outra estratégia de acumulação.

Também na era neoliberal acentuou-se a centralidade do mercado, propondo-se insistentemente o modelo de mercado e de mercadoria a áreas que até então tinham  escapado: a escola, o hospital, o setor da habitação, alega-se,  devem ser entendidas como empresas e devem ser geridas na perspetiva do aumento da produtividade e do lucro, esquecendo que escolas, hospitais e habitação condigna  não tem de dar lucro porque a educação, a saúde e a sobrevivência das pessoas são já valores em si, são um investimento nas pessoas, logo não têm nem devem estar submetidas à lógica da lucratividade e  da gestão empresarial.

Por outro lado, o cidadão é reduzido ao estatuto de consumidor – tudo gravita a volta do mercado – vender, comprar, lucrar são as palavras chave. Há o mercado de trabalho e o mercado de capitais, e ainda o mercado de consumidores que é preciso disputar através da publicidade, há a reação dos mercados a que é preciso estar atento, há o empreendedorismo, há o empresário de si mesmo, enfim, tudo expressões que ouvimos no nosso quotidiano e simbolizam bem a revolução operada.

Contudo, todas estas inovações têm-nos feito esquecer que, afinal, o neoliberalismo procura cumprir uma promessa antiga da democracia liberal e do liberalismo: reduzir de facto e não apenas nas intenções o papel do Estado ao de Estado mínimo, se possível apenas ocupado com questões de segurança; exércitos e polícias e com questões jurídicas, litígios que podem surgir entre os cidadãos. O famoso estado guarda-noturno, imprescindível aos ricos e poderosos. Por isso quando falamos e enchemos a boca com a democracia liberal, que opomos orgulhosamente às autocracias, devíamos ter o cuidado de dizer: Democracia Liberal Capitalista e aí talvez começassem a soar campainhas, alertando para a contradição nos termos que torna esta expressão um autêntico oxímoro.




domingo, 3 de setembro de 2023

 

Contributos para uma avaliação do “Populismo de Esquerda”

Retorno hoje à reflexão, que deixei em suspenso em anterior texto, sobre o designado “Populismo de Esquerda”, assumindo uma posição avaliativa que procurarei justificar.

Para compreender o populismo de esquerda parece-me necessário ter presente o papel que na esfera política ‘restou’ à esquerda, no rescaldo da implosão da União Soviética, ocorrida de forma completa e irreversível em fins de 1991.

Este evento – implosão da União Soviética - foi extremamente traumatizante para a esquerda internacional que, ao invés de estudar o fenómeno, procurar as causas reais da ocorrência e tentar divulgá-las o mais extensamente possível, fez exatamente o contrário, meteu a cabeça na areia e ficou refém de reflexões ideológicas que enfatizaram fundamentalmente duas coisas: a ausência de democracia e a ineficiência do socialismo. Essas reflexões nem sequer puseram em destaque o salto imenso  e o progresso inegável que ocorreu no país desde a revolução de 1917 até aos fins do século XX, apesar de todas as vicissitudes conhecidas, das quais a mais saliente foi a participação efetiva da URSS na segunda guerra mundial, vítima de uma brutal invasão e que perdeu mais de vinte milhões dos seus compatriotas, ao invés por exemplo dos Estados Unidos que só tardiamente entraram no conflito e mesmo assim circunscritos durante bom tempo à área do Pacífico, que nada sofreram internamente no seu território e que ainda por cima puderam lucrar com a economia de reconstrução da Europa e outras partes no pós guerra. Mas claro que tudo isto passou despercebido à grande maioria das pessoas, as quais em contrapartida puderam assistir aos filmes de Hollywood, que sempre enalteceram o papel dos estados unidos, e puderam assistir a “O Dia D” - desembarque na Normandia - protagonizado pelos bravos soldados norte-americanos. Quer dizer quando a guerra já estava ganha, muito por obra do tremendo esforço soviético, soaram trompetas e os heróis entraram em cena para colher os louros.

Mas voltemos à esquerda e à sua reação face à implosão da União Soviética. Fragilizada na sua possível argumentação a favor do socialismo, dado que no fim de contas o socialismo real dera com os burros na água, rendeu-se, genericamente falando, à democracia liberal e às suas potencialidades e passou a culpar o neoliberalismo por a desvirtuar; nesse contexto, para captar apoios imprescindíveis à sua manutenção enquanto farol político e face à lenta e penosa decadência e erosão dos partidos comunistas, procurou construir-se como populismo de esquerda, por contraposição ao populismo de direita que navegava já a todo o vapor. Isto ocorreu sobretudo no seculo XXI sobretudo a partir da crise de 2008, embora tivesse havido experiências populistas de direita e de esquerda ainda no decurso do seculo XX.

O que vai querer então o populismo de esquerda? Propõe-se um objetivo elevado: radicalizar a democracia, ir às suas raízes, e, aceitando os princípios da democracia liberal tentar seriamente cumprir o projeto democrático. O problema está em saber se foi capaz de criar condições para o alcançar ou se, laborando num erro inicial, o comprometeu irremediavelmente.

O que se constatou foi que os populismos de esquerda então reconhecidos se revelaram movimentos pouco consistentes e embora em vários países até possam ter conhecido momentos de glória, de seguida feneceram sem deixar rastos, exemplos do Syriza, na Grécia e do Podemos, em Espanha. Talvez porque afinal os fundamentos e as bases teóricas em que se alicerçam entram em contradição com o que é ou se pretende que seja a esquerda.

Para começo de conversa, entendo que a esquerda tem de se basear numa análise materialista histórica e dialética dos fenómenos sociais e históricos porque até à data esta metodologia ainda não foi superada, isto é, ainda não apareceu outra que com ela rivalize em termos de cientificidade. Você pode consultar uma bola de cristal, pode partir de uma conceção heroica da história, pode dar guarida a análises de senso comum, que atenção não é o mesmo que bom senso, ou pode … tentar uma abordagem científica. Até ao momento a única disponível é o materialismo histórico - dialético. Como o pressuposto de que se parte é que qualquer pensador que se pretenda de esquerda acredita na ciência, apesar de todas as limitações que esta comporta, só lhe resta de momento esta metodologia, se não a seguir, não se pode aceitar que a sua análise seja de esquerda, será quando muito de pseudoesquerda. Penso que este é o caso do populismo de esquerda.

Não está em causa que o populismo de esquerda seja, ou melhor, pretenda ser, democrático, o que está em causa é que recorra a estratégias que vão viciar os resultados que pretende alcançar porque aceita os dados sem os interpretar corretamente. Precisamos ter presente que, diferentemente da teorização de Maquiavel, os fins não justificam os meios, porque, lá está, a dialética diz-nos que é preciso estar atento já que entre meios e fins a relaçao não é unívoca, de um só sentido, é dialética e pode acontecer que o meio utilizado altere a natureza do fim que se pretende atingir. Assim, mal comparado - mas não resisto à comparação, extremamente esclarecedora - quando os Estados Unidos invadiram o Iraque invocando o ‘nobre fim’ de matarem um tirano e de expandirem a democracia, a única coisa que expandiram foi o caos e a miséria, já que como parece óbvio, ninguém se torna democrata por “força das baionetas”, bem pelo contrário.

Claro que o populismo de esquerda é inclusivo e emancipatório, tem um discurso identitário, tudo coisas muito positivas. Mas uma análise materialista histórica revela que as pautas identitárias, por mais respeitáveis que sejam, não alteram estruturalmente a realidade social na qual a exploração está inscrita como pedra de toque. Podemos supor um mundo sem discriminação com base na raça, género, preferência sexual, ou outra, no qual permaneça a exploração dos seres humanos por outros seres humanos.  

Por outro lado, cumpre reconhecer que a esquerda, ainda não recuperada da catástrofe que foi a queda da união soviética com a derrocada do chamado socialismo real que, como acima referido - mas nunca é demais insistir - não estudou, nem explicou, acabou por aceitar tacitamente que não há alternativa ao capitalismo e que a luta deverá ser contra o neoliberalismo pela defesa daquilo que entende como verdadeira democracia liberal, sem mais uma vez se questionar se tal regime permite real democraticidade. Ora ao admitir que não há alternativa ao capitalismo, a esquerda ficou sem um autêntico projeto político mobilizador, o que em minha opinião explica a tentativa de se constituir, em desespero de causa, como um movimento populista, parecendo não perceber que a democracia liberal existe e é permitida apenas enquanto funcionar como simulacro para disfarçar o capitalismo. Muitos equívocos de uma só penada.

Ainda, de acordo com os teóricos do populismo de esquerda o que basicamente o define, enquanto populismo, é ser um movimento político que se constrói em torno da noção de povo em antagonismo com a de elite, sendo aquele o elo positivo da corrente e esta o elo negativo e existindo entre os dois uma relaçao antagónica. Teria isto em comum com o populismo de direita. Assim a elite seria corrupta, gananciosa e açambarcadora, caraterísticas de que o povo se eximiria. Ora logo à partida esta consideração moralista e maniqueísta vai ao arrepio da análise (objetiva) que o materialismo histórico supõe; assim, só a título de exemplo, podemos referir que a tendência para a corrupção e para corromper ou se deixar corromper está presente tanto no povo como na elite; deitar a culpa nos políticos e ignorar a estrutura económica capitalista e a estrutura social classista é perfilhar o ‘discurso do taxista’ e do senso comum mais raso.

Os populistas de esquerda parecem pensar que se as instituições democráticas-liberais funcionassem de verdade e não a favor das elites tudo correria sobre carris e, numa espécie de pensamento voluntarista, aceitam tacitamente que a política é independente da economia; ora tal é um erro e crasso que implica não entender que as instituições democráticas foram desenhadas para favorecer as elites, embora claro tudo seja devidamente disfarçado para que a intenção não seja conhecida. Que o povo em geral não o perceba é grave, mas compreensível, que os populistas de esquerda não o percebam é incompreensível e mesmo imperdoável. Sonhar que o chamado populismo de esquerda possa subverter a democracia liberal e transformá-la, não se percebe como, numa democracia radical é o equivalente a um sonho de uma noite de verão...

Assim parece-me mais realista aceitar e reconhecer que tanto o populismo de direita como o de esquerda são estratégias para atrair as pessoas e alcançar e manter o poder político, essas estratégias têm algo em comum: criam a condição, pré requisito, para a construção de uma audiência que lhes possa ser favorável e lhes permita alcandorar-se ao poder, para tal exploram mais os sentimentos do que a racionalidade a fim de construírem um povo contra uma elite, mobilizando sentimentos de ódio que como sabemos são sentimentos aglutinadores porque focam a  atenção das pessoas num objetivo comum a todas, nesse aspeto o de direita é mais bem sucedido porque dirige o ódio contra bodes expiatórios fáceis de identificar: os negros, os emigrantes, as feministas os LGTB que  simbolizam aquilo que é a pedra no sapato que o povo nunca aceitou, porque é presa fácil de preconceitos e tradições ancestrais que teimam em persistir no inconsciente coletivo.

Assim, falar em populismo de esquerda, defender o populismo de esquerda, é cair na ratoeira preparada pelo neoliberalismo, que é bastante hábil nestas manobras linguísticas. Seria mais acertado dizer: não há populismo de esquerda porque o populismo é isto, isto, e isto, e acabava a conversa; daí partia para uma análise séria da realidade com que estamos confrontados para diagnosticar os problemas a fim de encontrar as soluções possíveis. Tal implica que os partidos políticos que se pretendem de esquerda abandonem os chavões em que continuam a insistir e apostem na procura da verdade e na construção de uma argumentação e de uma retórica convincentes, definindo objetivos no curto e no médio prazo e lutando por esses objetivos. Claro que isto é mais fácil de dizer do que de fazer, mas é preciso começar por algum lado.  


domingo, 27 de agosto de 2023

 

Propriedade privada e capitalismo -  Que tipo de propriedade privada está em causa? 

Chamo a atenção dos leitores e leitoras para a necessidade de dominarmos o conceito de propriedade privada a fim de não sermos vitimas do discurso sofístico daqueles que nos querem convencer que não é do nosso interesse dispensar o capitalismo e aderir ao socialismo porque seriamos imediatamente privados dos nossos bens mais elementares e queridos. De facto, o meu e o teu estão de tal maneira impregnados nas nossas mentalidades e afetos, o instinto de posse parece tão forte que seria um empreendimento destinado ao fracasso ignorá-lo.

Comecemos então por elucidar o conceito de propriedade privada, fulcral no debate sobre a diferença entre capitalismo e socialismo. Em termos gerais, o conceito de propriedade privada aplica-se a bens materiais ou imateriais suscetíveis de serem possuídos e controlados por indivíduos ou por organizações. Corresponde a um conceito dotado de uma extensão muito abrangente pois inclui coisas tão diversas como, por exemplo, o vestuário que uma pessoa usa, a casa que habita, o automóvel que conduz, um pequeno campo onde cultiva alguns legumes, mas também, por exemplo, fontes de recursos energéticos como petróleo e eletricidade, minas de carvão, diamantes ou outras, fábricas de produção de automóveis, empresas de aviação, caminhos de ferro, direitos literários, patentes de invenções, etc. etc.

Esta enumeração permite compreender que, embora a designação seja a mesma, há pelo menos dois tipos distintos de propriedade privada, por um lado a daqueles bens que as pessoas possuem e que diretamente permitem a sua sobrevivência e comodidade e, por outro, a de bens que são recursos para a produção a uma certa escala de outros bens, que poderemos designar de ‘meios sociais de produção’.

Por estes motivos, o conceito de propriedade privada e sua admissão enquanto direito do indivíduo – um dos princípios fundamentais da teoria política liberal – reporta uma ideia plena de ambiguidade e geradora de equívocos e confusões. Isto porque desde logo não se distinguiu a propriedade de bens individuais básicos, necessários à sobrevivência imediata do individuo, da propriedade de meios de produção, como por exemplo terras, manufaturas, fábricas, maquinaria agrícola e outras que servem não só o propósito de garantir a sobrevivência dos indivíduos, mas também de aumentar num nível desproporcionado a riqueza dos detentores desse tipo de propriedade, estabelecendo por esse meio uma enorme desigualdade social que pode ser resumida numa expressão curta mas incisiva: os que têm e os que não têm (como se diz em língua inglesa the haves and the have nots)

Ora, neste segundo sentido, aquele que Marx referiu – propriedade privada dos meios de produção - temos de reconhecer que o número de proprietários tem sido, desde sempre, extremamente reduzido face à grande maioria da população que não tem qualquer controlo sobre os meios de produção e acaba por ter de sobreviver vendendo a sua capacidade de trabalho em troca de uma salário, pelo que é absurdo que alimente qualquer temor quanto à abolição da propriedade privada dos meios de produção: não pode temer perder aquilo que nunca possuiu. 

Em relação a esta destrinça entre propriedade privada tout court e propriedade privada dos meios de produção convém à minoria, detentora desta ultima, ignora-la para que afinal se crie uma espécie de frente ampla que defenda pura e simplesmente o direito de propriedade privada.

Esta indiferenciação entre propriedade privada de meios de produção e propriedade privada de bens de usufruto serve o propósito de atemorizar as pessoas relativamente a qualquer teoria ou movimento político que proponha medidas tendentes à abolição, ou sequer à mitigação, da propriedade privada (dos meios de produção) porque, por esse meio, a maioria das pessoas julga que vai ser atingida por essas medidas. Teme ver-se despojada da sua habitação, do seu carro, da sua pequena horta, das suas ferramentas de trabalho, etc. Ora como refere W. Reich:

O conceito marxista de propriedade privada não se refere às camisas do homem, calças, máquinas de escrever, papel higiênico, livros, camas, poupanças, casas, bens imobiliários, etc. Este conceito foi usado exclusivamente por referência à propriedade privada dos meios sociais de produção, isto é, aqueles meios de produção que determinam o curso geral da sociedade. “ W. Reich

Como aqui se diz, os meios sociais de produção ‘determinam o curso geral da sociedade’, isto implica, para apontarmos uma situação ilustrativa, que, por exemplo, a eventual deslocalização de uma fábrica, decidida unilateralmente pelo proprietário, pode precipitar no desemprego e na pobreza toda uma comunidade, assim se vendo as repercussões que o regime de propriedade privada (dos meios sociais de produção) pode ter na vida das pessoas.

Todavia, o liberalismo e as democracias liberais contam com a duplicidade e equívoco entre propriedade privada e propriedade privada dos meios sociais de produção para hostilizar qualquer veleidade de instauração de um regime político socialista que constitua uma alternativa ao capitalismo, omitindo-se muito oportunamente que Karl Marx não criticou a existência de propriedade privada, criticou sim a existência de propriedade privada dos meios sociais de produção, que afinal se encontrava, e ainda encontra, nas mãos de uma elite, de uma minoria, que desse modo detém as alavancas do poder económico e de forma indireta do poder político, exercendo dominação sobre os restantes, ajudada pelo soft power dos meios de comunicação e divulgação de ideias.

Quer dizer, a abolição do regime de propriedade privada dos meios sociais de produção, isto é, do capitalismo, não tem nada a ver com a expropriação de bens de consumo ou de bens direcionados para o real usufruto por parte da pessoas com vista a sua vida e sobrevivência, só estão em causa os bens diretamente ligados à produção de outros bens, a uma determinada escala - que impactem decisivamente na vida social.  

Ora os fazedores de opinião aproveitaram o facto de tanto uma camisa como a casa em que alguém vive ou uma empresa de caminhos de ferro serem propriedade privada para estabelecerem a confusão na cabeça das pessoas dizendo que o marxismo e o comunismo pretendem abolir a propriedade privada, omitindo que apenas pretendem abolir a propriedade privada dos meios sociais de produção, o que de facto não é pouca coisa e é uma ideia insuportável para aqueles poucos, mas influentes, que a detém.

Esta confusão serve o propósito pretendido: conseguir que temerosamente as populações, mesmo as mais humildes, receiem o comunismo/socialismo e fiquem mais recetivas á aceitação do sistema capitalista que se apresenta como a única alternativa credível porque lhes garantiria a manutenção da propriedade privada, mesmo se esta fosse apenas constituída pelos parcos haveres que possuem ou por uma residência da qual, via de regra, pagam empréstimo bancário sujeito a juros chorudos que os depenam durante a maior parte da sua existência.

Ora como acima referido, o que o marxismo preconiza é a socialização dos meios sociais de produção porque estes têm uma repercussão tal na vida de uma sociedade e da generalidade das pessoas que será no mínimo insensato permitir que uns poucos, uma minoria muito reduzida, uma elite, deles se aposse e consiga impor o rumo que toda a sociedade deve seguir, determinando o que se deve produzir, como e onde, ficando os restantes à mercê destas decisões que têm uma influencia decisiva nas suas vidas. Há ainda a agravante de que quem domina os meios sociais de produção tem um poder extraordinário de barganha sobre a restante população que permite a persistência da exploração do homem pelo homem, desde sempre existente, mas que se refinou extremamente com a implementação deste sistema para o qual é desejável e legitimo procurar alternativa.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

 

Deve estimular-se um populismo de esquerda?

A esquerda, em nome da razão e da racionalidade, tem dificuldade em aceitar movimentos populistas de esquerda, cujo denominador comum com os de direita é o apelo enfático aos sentimentos do auditório e a promoção de lideres carismáticos de pendor autoritário. Ora, o assunto merece alguma atenção, se considerarmos, com Chantal Mouffe, que:

As ideias corretas não são suficientes (…), as ideias só têm força quando encontram afetos. Na política, não basta ter um programa bem elaborado. Para gerar lealdade e induzir as pessoas a agirem, ela precisa transmitir afetos que ressoem com seus desejos e experiências pessoais.[1]

Precisamente, Chantal Mouffe, consciente da importância da afetividade no  empenhamento político,  defende a tese da oportunidade e mesmo necessidade de se promoverem movimentos populistas de esquerda que basicamente cumpram o objetivo de criar uma identidade coletiva, tão mais necessária quanto o individualismo neoliberal esfacelou o sentido de comunidade.

Mouffe começa por aceitar a premissa de que as massas populares tendem a dar a sua adesão a movimentos populistas na base não tanto da razão, mas de sentimentos mobilizadores, nomeadamente sentimentos de ódio, direcionados para todos aqueles que julgam responsáveis pela situação em que se encontram, e ainda de indignação, pela injustiça que vivem na própria pele, bem como de esperança, na espectativa de que seja possível fazer qualquer coisa, mudando o rumo e eliminando os fatores perturbadores. Há assim um universo vasto permeável ás promessas populistas.

Continuando o seu raciocínio, deduz que, se o único campo aberto for o do populismo de direita, esse campo vai absorver os descontentes que são muitos e a esquerda apenas irá aliciar aqueles poucos que ao fim ao cabo constituem uma mini elite intelectual capaz de compreender uma argumentação consistente.

Com base nesta premissa conclui que o populismo de esquerda deve responder a esta necessidade da vasta maioria da população, a fim de não a entregar de mão beijada à direita e suas manobras manipuladoras.

Apresenta pois o populismo de esquerda como uma espécie de estratégia capaz de captar a tendência popular para aderir a movimentos populistas que sem alternativa terão ampla liberdade para atuar já que respondem a uma necessidade das pessoas, nomeadamente das camadas mais vulneráveis.

Em síntese, a argumentação é de que se os movimentos populistas de direita jogam não só com a racionalidade, mas sobretudo com os afetos, sentimentos e emoções, impõe-se que a esquerda admita a importância destes e entre no jogo, com objetivos obviamente diferentes, reconhecendo duas coisas muito importantes, uma é que os afetos permitem criar nas massas populares um sentimento de identidade, sempre aglutinador e mobilizador; outra é que, sobretudo em tempos de crise, a generalidade das pessoas está mais interessada em segurança do que em liberdade e adere a líderes salvíficos, mesmo se estes assumem posturas autocráticas e ditatoriais.

Temos de reconhecer que a criação de uma forma coletiva de identificação - algo que a direita faz muito bem - é de facto indispensável na luta política; neste aspeto estabelecer uma separação nítida entre as elites e o povo comum funciona para a direita, mas deveria funcionar ainda melhor para a esquerda porque de facto permite opor as massas populares à elite dominante, particularmente os 0,01% que detém a riqueza (e são os donos do planeta que todos habitamos e que pela sua ganância pode ser destruído).

De facto, em períodos de crise profunda as pessoas são mais sensíveis, mais atraídas pelo valor segurança do que pelo valor liberdade, os fascismos percebem isso; ora a esquerda precisa de mobilizar esses sentimentos a seu favor; precisa de perceber que as populações têm necessidade de se sentirem seguras e protegidas pelo Estado, não permitindo que a direita hasteie com exclusividade estas bandeiras e as oriente no sentido mais reacionário. Tem de levar em conta que as pessoas podem ser racionais, mas o que as mobiliza não é a razão, são as paixões, são estas que incentivam a lutar por uma ideia, são estas que levam as pessoas a unirem-se e a criarem uma identidade própria que lhes confere força.

A esquerda é obviamente racionalista e julga que basta argumentar para convencer, julga, e bem, que vence quem convence, mas ignora que o convencimento passa por outros caminhos que não apenas o argumentativo.

Partindo desta base, Mouffe pergunta-se como será possível criar nas pessoas esperança, um sentimento positivo que as mobilize e identifica algumas etapas:

(1) Será preciso apresentar um projeto de mudança;

(2) Este tem de possuir alguma viabilidade e representar um progresso;

(3) Será necessário congregar boas vontades e uni-las nesse projeto.

Dá como exemplo um projeto em defesa do meio ambiente articulado com demandas sociais que se transforme num polo aglutinador, porque se conecta com a defesa da vida e da civilização e é compatível com a ideia de soberania nacional e dos valores da vida e da paz.

Apresentada esta posição cumpre-me referir as minhas dúvidas de que seja desejável estimular populismos de esquerda, mas deixarei esta reflexão para um próximo texto. Aí procurarei argumentar, com a consciência de que toda a argumentação é uma forma de investigação que, se for honesta, pode mesmo conduzir a conclusões diferentes das inicialmente assumidas.  



[1] Chantal Mouffe, “Não subestimem o populismo de esquerda”

 

segunda-feira, 24 de julho de 2023

 

Afinidades substantivas entre fascismo e capitalismo

É meu objetivo confirmar de forma consistente a tese, que já enunciei antes, de que a ameaça fascista é real porque as afinidades entre capitalismo e fascismo são mais relevantes do que as suas diferenças.

 Para atingir este objetivo, realço, por um lado, as ideias dominantes destas duas ideologias e, por outro, refiro as ambiguidades e conivências que o processo histórico recente, particularmente o da segunda guerra mundial e do pós-guerra, evidencia.

Quanto ao primeiro ponto – afinidades de fundo entre capitalismo e fascismo – nunca é demais chamar a atenção para o facto de que na base tanto do capitalismo quanto do fascismo se encontra a defesa intransigente da propriedade privada, particularmente da propriedade privada dos meios de produção, que configura um modelo económico que se opõe ao modelo socialista/comunista, o qual propõe limitações ao direito de propriedade privada e a estatização ou pelo menos o controlo do Estado sobre os mais básicos e importantes meios de produção.

Assim, bem vistas as coisas, a ordem económico e social defendida pelo fascismo não é no essencial diferente da ordem económico e social defendida pelo capitalismo e pelas democracias liberais. Em ambos os casos o inimigo público número um é o comunismo, tornado presente e fazendo-se lembrar através das reivindicações dos setores trabalhistas, que pretendem conter, podendo haver divergência na estratégia a utilizar.

Neste contexto tem plausibilidade a perceção de que o desentendimento na segunda guerra mundial entre estados nazi fascistas e outros estados capitalistas só ocorreu, só levou às vias de facto, dado o apetite voraz dos primeiros por zonas de domínio e influência que, se apropriadas, os tornariam rivais indesejavelmente muito poderosos; a partir daí, claro, houve necessidades de os transformar em símbolos do mal que era preciso extirpar, mesmo assim, sem grandes pressas e com muitas conivências à mistura.

Um outro facto histórico que podemos invocar para corroborar a tese de que entre capitalismo e fascismo há maiores afinidades do que divergências é o exemplo de que o partido fascista italiano, criado e liderado por Mussolini em 1921 foi subsidiado por capitalistas, ‘capitães da Indústria, e por grandes latifundiários e Mussolini foi alçado a primeiro ministro pela mão do então rei de Itália, Vitor Emanuel III – os factos falam por si, será preciso dizer mais?!

Alem disso, quem quer que faça uma análise minimamente imparcial dos relatos históricos relativos à segunda guerra mundial - e atenção não é esse o caso da maior parte dos filmes produzidos em Hollywood - tem de reconhecer que a grande obreira da vitória sobre o fascismo e o nazismo foi a União Soviética, não a Europa que passou boa parte dos anos da guerra submetida á Alemanha, perante a qual capitulou com demasiada facilidade, para não suscitar dúvidas sobre alguma, se não muita, complacência dos seus dirigentes; nem sequer foram os Estados Unidos que só entraram no conflito em fins de 1941, após o ataque japonês a Pearl Harbour (dezembro de 41) e só apoiaram o esforço de guerra na Europa a partir de Julho de 43, as datas falam por si para percebermos que, embora importante,  só vieram dar uma ajuda, depois da União Soviética ter feito a maior parte do trabalho, sofrendo pesadíssimas perdas em vidas e em recursos, incomparavelmente maiores que a dos outros países aliados.

Em relaçao à segunda guerra mundial, tudo aponta no sentido de que os países ocidentais teriam tolerado a expansão nazi alemã desde que esta se tivesse focado única e exclusivamente nos países do leste europeu, incluindo obviamente a União Soviética, pois seria um serviço não negligenciável que esta lhes prestaria.

De modo que a segunda guerra mundial, tal como a primeira, também revestiu a forma de um conflito entre dois blocos capitalistas, dos quais um deles - os chamados países do eixo - pretendia uma divisão mais equitativa do ’espaço vital’ e dos recursos, sendo a união soviética apanhada no meio do furacão e tendo de se aliar a um dos blocos, por uma questão de sobrevivência, para evitar a sua pura e simples destruição. Claro que, assinada a paz, começou a guerra fria … com os desenvolvimentos que se conhecem.

Curiosamente, porventura para disfarçar, o capitalismo e os capitalistas defendem uma perspetiva diferente e até antagónica, isto é, tentam mostrar afinidades entre fascismo e comunismo, insistindo não nas divergências radicais no plano económico e político, que são bem substantivas, mas mais propriamente em semelhanças no modus faciendi: autocracia e totalitarismo, esquecendo oportunamente que este – o modus faciendi - é mais conjuntural do que estrutural.

Para provar este ponto, lembro que, por exemplo, a adoção de medidas inibidoras das liberdades individuais por um determinado Estado - um dos aludidos sintomas de totalitarismo - pode ser motivada pelo contexto histórico, pela necessidade imperiosa de resistir a um Estado hostil muito mais poderoso; vide o caso de Cuba e do cerco que os Estados Unidos para ela representaram; no mesmo diapasão, o da Venezuela; ou ainda o caso da própria China e como, não tivesse havido essa precaução, teria sido fácil  ao imperialismo norte americano abalá-los, criar instabilidade interna, provocar cisões e cizânias  e anulá-los, inclusive enquanto estados soberanos e independentes, transformando-os em seus vassalos. Dividir para reinar é obviamente tarefa que está simplificada se a unidade for fraca, e o individualismo e as tão prezadas liberdades individuais têm esse aspeto curioso, são um luxo, muitas vezes mais aparente do que real, a que muitos mesmo assim não se podem dar porque os fragiliza e os torna presa fácil para aqueles que os querem dominar e transformar em marionetes ao seu dispor.

sábado, 22 de julho de 2023

 

Capitalismo e cumplicidades com o fascismo?[1]

A ascensão do fascismo nas primeiras décadas do século XX, como foi o caso, na Europa, da Itália (1922) Alemanha (1933), Portugal (1933), Espanha (1936) e, na Ásia, do Japão (início da década de trinta) não ocorreu num vácuo nem por qualquer acidente de percurso, foi a resposta que as elites capitalistas dirigentes encontraram para tornear a crise profunda que o sistema então enfrentou.

Essa crise foi provocada por vários fatores, entre os quais se destacaram as crises inflacionarias que se seguiram ao termo da primeira guerra mundial, com uma economia extremamente desorganizada, escassez de bens de primeira necessidade e desemprego maciço, ligado à desmobilização das tropas, antes envolvidas no conflito.

Estes fenómenos económicos e sociais – hiperinflação, escassez de bens, desemprego maciço geraram profundo descontentamento das populações aproveitado pelos movimentos de esquerda para desestabilizar o sistema produzindo reivindicações e agitação social. Como é obvio, as elites capitalistas não podiam ficar indiferentes a estes acontecimentos pois temiam não só o sucesso da revolução socialista soviética como anteviam a possibilidade desta se estender a outras geografias. Quer dizer todos estes fatores colaboraram no sentido de fazer tremer o sistema capitalista e as suas elites que nesse contexto percebiam que as democracias liberais com as suas liberdades formais e o seu estado de direito não seriam a ferramenta adequada para lidar de forma musculada com as dificuldades sentidas.

Não por acaso os países nos quais o fascismo se implantou com mais sucesso e força foram precisamente os grandes derrotados da primeira guerra mundial; a paz imposta foi humilhante para os vencidos e as elites desses países bem como as classes médias temiam que a instauração de regimes socialistas, alimentada pelo exemplo da união soviética, fosse bem-sucedida.

Mas não se pense que os países capitalistas não fascistas se distanciaram destes, como se impunha, dado apresentarem-se como democracias liberais; bem pelo contrário, mais ou menos abertamente mostraram, através de representantes ilustres, se não a sua simpatia pelo menos a sua compreensão por estes regimes, tanto antes da segunda guerra mundial como mesmo depois; lembremos, por exemplo, que o Portugal de Salazar, declaradamente fascista, foi membro fundador da NATO, organização que incorporou em 1949, apesar de ter sido  óbvia a simpatia do salazarismo para com o regime nazi. E isto aconteceu porque o fascismo garantia aberta e insistentemente o seu odio ao comunismo que era também o maior temor dos países capitalistas.

Numa outra dimensão foi o temor pelo socialismo que alimentou o estado de bem-estar social promovido pelas democracias liberais capitalistas do pós-guerra que tentaram prevenir conflitos e rebeliões sociais fazendo cedências comportáveis às suas populações trabalhadoras.

Temos assim que no decurso entre as duas Guerras o fascismo foi visto com um olhar benevolente pelas classes dirigentes da generalidade dos países capitalistas pois afinal era um aliado, embora incómodo, na luta contra o comunismo, que tanto temiam e diabolizavam, como o inimigo número um a abater. Por isso, apesar de insólito, compreende-se à luz do processo histórico a simpatia e compreensão de Churchill, campeão da democracia liberal ocidental, por Mussolini e por Hitler, e este é apenas um exemplo paradigmático.

Em relaçao à segunda guerra mundial, tudo aponta no sentido de que os países ocidentais teriam tolerado a expansão nazi alemã desde que esta se tivesse focado única e exclusivamente nos países do leste europeu, incluindo obviamente a união soviética, pois seria um serviço não negligenciável que esta lhes prestaria.

De modo que a segunda guerra mundial, tal como a primeira, também revestiu a forma de um conflito entre dois blocos capitalistas, dos quais um deles - os chamados países do eixo - pretendia uma divisão mais equitativa do ’espaço vital’ e dos recursos, sendo a união soviética apanhada no meio do furacão e tendo de se aliar a um dos blocos, por uma questão de sobrevivência, para evitar a sua pura e simples destruição. Claro que assinada a paz começou a guerra fria … com os desenvolvimentos que se conhecem.



[1] Aconselho a leitura do artigo “Capitalismo, fascismo e guerra “, de Jorge Cadima, in INTERNACIONAL, EDIÇÃO Nº 373 - JUL/AGO 2021, que me inspirou a escrever este texto.

 

  O que é a democracia liberal? – uma resposta breve Se quiséssemos sintetizar numa expressão breve o que é a democracia liberal poderíamo...