domingo, 27 de agosto de 2023

 

Propriedade privada e capitalismo -  Que tipo de propriedade privada está em causa? 

Chamo a atenção dos leitores e leitoras para a necessidade de dominarmos o conceito de propriedade privada a fim de não sermos vitimas do discurso sofístico daqueles que nos querem convencer que não é do nosso interesse dispensar o capitalismo e aderir ao socialismo porque seriamos imediatamente privados dos nossos bens mais elementares e queridos. De facto, o meu e o teu estão de tal maneira impregnados nas nossas mentalidades e afetos, o instinto de posse parece tão forte que seria um empreendimento destinado ao fracasso ignorá-lo.

Comecemos então por elucidar o conceito de propriedade privada, fulcral no debate sobre a diferença entre capitalismo e socialismo. Em termos gerais, o conceito de propriedade privada aplica-se a bens materiais ou imateriais suscetíveis de serem possuídos e controlados por indivíduos ou por organizações. Corresponde a um conceito dotado de uma extensão muito abrangente pois inclui coisas tão diversas como, por exemplo, o vestuário que uma pessoa usa, a casa que habita, o automóvel que conduz, um pequeno campo onde cultiva alguns legumes, mas também, por exemplo, fontes de recursos energéticos como petróleo e eletricidade, minas de carvão, diamantes ou outras, fábricas de produção de automóveis, empresas de aviação, caminhos de ferro, direitos literários, patentes de invenções, etc. etc.

Esta enumeração permite compreender que, embora a designação seja a mesma, há pelo menos dois tipos distintos de propriedade privada, por um lado a daqueles bens que as pessoas possuem e que diretamente permitem a sua sobrevivência e comodidade e, por outro, a de bens que são recursos para a produção a uma certa escala de outros bens, que poderemos designar de ‘meios sociais de produção’.

Por estes motivos, o conceito de propriedade privada e sua admissão enquanto direito do indivíduo – um dos princípios fundamentais da teoria política liberal – reporta uma ideia plena de ambiguidade e geradora de equívocos e confusões. Isto porque desde logo não se distinguiu a propriedade de bens individuais básicos, necessários à sobrevivência imediata do individuo, da propriedade de meios de produção, como por exemplo terras, manufaturas, fábricas, maquinaria agrícola e outras que servem não só o propósito de garantir a sobrevivência dos indivíduos, mas também de aumentar num nível desproporcionado a riqueza dos detentores desse tipo de propriedade, estabelecendo por esse meio uma enorme desigualdade social que pode ser resumida numa expressão curta mas incisiva: os que têm e os que não têm (como se diz em língua inglesa the haves and the have nots)

Ora, neste segundo sentido, aquele que Marx referiu – propriedade privada dos meios de produção - temos de reconhecer que o número de proprietários tem sido, desde sempre, extremamente reduzido face à grande maioria da população que não tem qualquer controlo sobre os meios de produção e acaba por ter de sobreviver vendendo a sua capacidade de trabalho em troca de uma salário, pelo que é absurdo que alimente qualquer temor quanto à abolição da propriedade privada dos meios de produção: não pode temer perder aquilo que nunca possuiu. 

Em relação a esta destrinça entre propriedade privada tout court e propriedade privada dos meios de produção convém à minoria, detentora desta ultima, ignora-la para que afinal se crie uma espécie de frente ampla que defenda pura e simplesmente o direito de propriedade privada.

Esta indiferenciação entre propriedade privada de meios de produção e propriedade privada de bens de usufruto serve o propósito de atemorizar as pessoas relativamente a qualquer teoria ou movimento político que proponha medidas tendentes à abolição, ou sequer à mitigação, da propriedade privada (dos meios de produção) porque, por esse meio, a maioria das pessoas julga que vai ser atingida por essas medidas. Teme ver-se despojada da sua habitação, do seu carro, da sua pequena horta, das suas ferramentas de trabalho, etc. Ora como refere W. Reich:

O conceito marxista de propriedade privada não se refere às camisas do homem, calças, máquinas de escrever, papel higiênico, livros, camas, poupanças, casas, bens imobiliários, etc. Este conceito foi usado exclusivamente por referência à propriedade privada dos meios sociais de produção, isto é, aqueles meios de produção que determinam o curso geral da sociedade. “ W. Reich

Como aqui se diz, os meios sociais de produção ‘determinam o curso geral da sociedade’, isto implica, para apontarmos uma situação ilustrativa, que, por exemplo, a eventual deslocalização de uma fábrica, decidida unilateralmente pelo proprietário, pode precipitar no desemprego e na pobreza toda uma comunidade, assim se vendo as repercussões que o regime de propriedade privada (dos meios sociais de produção) pode ter na vida das pessoas.

Todavia, o liberalismo e as democracias liberais contam com a duplicidade e equívoco entre propriedade privada e propriedade privada dos meios sociais de produção para hostilizar qualquer veleidade de instauração de um regime político socialista que constitua uma alternativa ao capitalismo, omitindo-se muito oportunamente que Karl Marx não criticou a existência de propriedade privada, criticou sim a existência de propriedade privada dos meios sociais de produção, que afinal se encontrava, e ainda encontra, nas mãos de uma elite, de uma minoria, que desse modo detém as alavancas do poder económico e de forma indireta do poder político, exercendo dominação sobre os restantes, ajudada pelo soft power dos meios de comunicação e divulgação de ideias.

Quer dizer, a abolição do regime de propriedade privada dos meios sociais de produção, isto é, do capitalismo, não tem nada a ver com a expropriação de bens de consumo ou de bens direcionados para o real usufruto por parte da pessoas com vista a sua vida e sobrevivência, só estão em causa os bens diretamente ligados à produção de outros bens, a uma determinada escala - que impactem decisivamente na vida social.  

Ora os fazedores de opinião aproveitaram o facto de tanto uma camisa como a casa em que alguém vive ou uma empresa de caminhos de ferro serem propriedade privada para estabelecerem a confusão na cabeça das pessoas dizendo que o marxismo e o comunismo pretendem abolir a propriedade privada, omitindo que apenas pretendem abolir a propriedade privada dos meios sociais de produção, o que de facto não é pouca coisa e é uma ideia insuportável para aqueles poucos, mas influentes, que a detém.

Esta confusão serve o propósito pretendido: conseguir que temerosamente as populações, mesmo as mais humildes, receiem o comunismo/socialismo e fiquem mais recetivas á aceitação do sistema capitalista que se apresenta como a única alternativa credível porque lhes garantiria a manutenção da propriedade privada, mesmo se esta fosse apenas constituída pelos parcos haveres que possuem ou por uma residência da qual, via de regra, pagam empréstimo bancário sujeito a juros chorudos que os depenam durante a maior parte da sua existência.

Ora como acima referido, o que o marxismo preconiza é a socialização dos meios sociais de produção porque estes têm uma repercussão tal na vida de uma sociedade e da generalidade das pessoas que será no mínimo insensato permitir que uns poucos, uma minoria muito reduzida, uma elite, deles se aposse e consiga impor o rumo que toda a sociedade deve seguir, determinando o que se deve produzir, como e onde, ficando os restantes à mercê destas decisões que têm uma influencia decisiva nas suas vidas. Há ainda a agravante de que quem domina os meios sociais de produção tem um poder extraordinário de barganha sobre a restante população que permite a persistência da exploração do homem pelo homem, desde sempre existente, mas que se refinou extremamente com a implementação deste sistema para o qual é desejável e legitimo procurar alternativa.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

 

Deve estimular-se um populismo de esquerda?

A esquerda, em nome da razão e da racionalidade, tem dificuldade em aceitar movimentos populistas de esquerda, cujo denominador comum com os de direita é o apelo enfático aos sentimentos do auditório e a promoção de lideres carismáticos de pendor autoritário. Ora, o assunto merece alguma atenção, se considerarmos, com Chantal Mouffe, que:

As ideias corretas não são suficientes (…), as ideias só têm força quando encontram afetos. Na política, não basta ter um programa bem elaborado. Para gerar lealdade e induzir as pessoas a agirem, ela precisa transmitir afetos que ressoem com seus desejos e experiências pessoais.[1]

Precisamente, Chantal Mouffe, consciente da importância da afetividade no  empenhamento político,  defende a tese da oportunidade e mesmo necessidade de se promoverem movimentos populistas de esquerda que basicamente cumpram o objetivo de criar uma identidade coletiva, tão mais necessária quanto o individualismo neoliberal esfacelou o sentido de comunidade.

Mouffe começa por aceitar a premissa de que as massas populares tendem a dar a sua adesão a movimentos populistas na base não tanto da razão, mas de sentimentos mobilizadores, nomeadamente sentimentos de ódio, direcionados para todos aqueles que julgam responsáveis pela situação em que se encontram, e ainda de indignação, pela injustiça que vivem na própria pele, bem como de esperança, na espectativa de que seja possível fazer qualquer coisa, mudando o rumo e eliminando os fatores perturbadores. Há assim um universo vasto permeável ás promessas populistas.

Continuando o seu raciocínio, deduz que, se o único campo aberto for o do populismo de direita, esse campo vai absorver os descontentes que são muitos e a esquerda apenas irá aliciar aqueles poucos que ao fim ao cabo constituem uma mini elite intelectual capaz de compreender uma argumentação consistente.

Com base nesta premissa conclui que o populismo de esquerda deve responder a esta necessidade da vasta maioria da população, a fim de não a entregar de mão beijada à direita e suas manobras manipuladoras.

Apresenta pois o populismo de esquerda como uma espécie de estratégia capaz de captar a tendência popular para aderir a movimentos populistas que sem alternativa terão ampla liberdade para atuar já que respondem a uma necessidade das pessoas, nomeadamente das camadas mais vulneráveis.

Em síntese, a argumentação é de que se os movimentos populistas de direita jogam não só com a racionalidade, mas sobretudo com os afetos, sentimentos e emoções, impõe-se que a esquerda admita a importância destes e entre no jogo, com objetivos obviamente diferentes, reconhecendo duas coisas muito importantes, uma é que os afetos permitem criar nas massas populares um sentimento de identidade, sempre aglutinador e mobilizador; outra é que, sobretudo em tempos de crise, a generalidade das pessoas está mais interessada em segurança do que em liberdade e adere a líderes salvíficos, mesmo se estes assumem posturas autocráticas e ditatoriais.

Temos de reconhecer que a criação de uma forma coletiva de identificação - algo que a direita faz muito bem - é de facto indispensável na luta política; neste aspeto estabelecer uma separação nítida entre as elites e o povo comum funciona para a direita, mas deveria funcionar ainda melhor para a esquerda porque de facto permite opor as massas populares à elite dominante, particularmente os 0,01% que detém a riqueza (e são os donos do planeta que todos habitamos e que pela sua ganância pode ser destruído).

De facto, em períodos de crise profunda as pessoas são mais sensíveis, mais atraídas pelo valor segurança do que pelo valor liberdade, os fascismos percebem isso; ora a esquerda precisa de mobilizar esses sentimentos a seu favor; precisa de perceber que as populações têm necessidade de se sentirem seguras e protegidas pelo Estado, não permitindo que a direita hasteie com exclusividade estas bandeiras e as oriente no sentido mais reacionário. Tem de levar em conta que as pessoas podem ser racionais, mas o que as mobiliza não é a razão, são as paixões, são estas que incentivam a lutar por uma ideia, são estas que levam as pessoas a unirem-se e a criarem uma identidade própria que lhes confere força.

A esquerda é obviamente racionalista e julga que basta argumentar para convencer, julga, e bem, que vence quem convence, mas ignora que o convencimento passa por outros caminhos que não apenas o argumentativo.

Partindo desta base, Mouffe pergunta-se como será possível criar nas pessoas esperança, um sentimento positivo que as mobilize e identifica algumas etapas:

(1) Será preciso apresentar um projeto de mudança;

(2) Este tem de possuir alguma viabilidade e representar um progresso;

(3) Será necessário congregar boas vontades e uni-las nesse projeto.

Dá como exemplo um projeto em defesa do meio ambiente articulado com demandas sociais que se transforme num polo aglutinador, porque se conecta com a defesa da vida e da civilização e é compatível com a ideia de soberania nacional e dos valores da vida e da paz.

Apresentada esta posição cumpre-me referir as minhas dúvidas de que seja desejável estimular populismos de esquerda, mas deixarei esta reflexão para um próximo texto. Aí procurarei argumentar, com a consciência de que toda a argumentação é uma forma de investigação que, se for honesta, pode mesmo conduzir a conclusões diferentes das inicialmente assumidas.  



[1] Chantal Mouffe, “Não subestimem o populismo de esquerda”

 

  O que é a democracia liberal? – uma resposta breve Se quiséssemos sintetizar numa expressão breve o que é a democracia liberal poderíamo...