Propriedade privada e capitalismo - Que tipo de propriedade privada está em causa?
Chamo a atenção dos leitores e leitoras para a necessidade de dominarmos o conceito de propriedade privada a fim de não sermos vitimas do discurso sofístico daqueles que nos querem convencer que não é do nosso interesse dispensar o capitalismo e aderir ao socialismo porque seriamos imediatamente privados dos nossos bens mais elementares e queridos. De facto, o meu e o teu estão de tal maneira impregnados nas nossas mentalidades e afetos, o instinto de posse parece tão forte que seria um empreendimento destinado ao fracasso ignorá-lo.
Comecemos então por elucidar o conceito de propriedade privada, fulcral no debate sobre a diferença entre capitalismo e socialismo. Em termos gerais, o conceito de propriedade privada aplica-se a bens materiais ou imateriais suscetíveis de serem possuídos e controlados por indivíduos ou por organizações. Corresponde a um conceito dotado de uma extensão muito abrangente pois inclui coisas tão diversas como, por exemplo, o vestuário que uma pessoa usa, a casa que habita, o automóvel que conduz, um pequeno campo onde cultiva alguns legumes, mas também, por exemplo, fontes de recursos energéticos como petróleo e eletricidade, minas de carvão, diamantes ou outras, fábricas de produção de automóveis, empresas de aviação, caminhos de ferro, direitos literários, patentes de invenções, etc. etc.
Esta enumeração permite compreender que, embora a designação seja a mesma, há pelo menos dois tipos distintos de propriedade privada, por um lado a daqueles bens que as pessoas possuem e que diretamente permitem a sua sobrevivência e comodidade e, por outro, a de bens que são recursos para a produção a uma certa escala de outros bens, que poderemos designar de ‘meios sociais de produção’.
Por estes motivos, o conceito de propriedade privada e sua admissão enquanto direito do indivíduo – um dos princípios fundamentais da teoria política liberal – reporta uma ideia plena de ambiguidade e geradora de equívocos e confusões. Isto porque desde logo não se distinguiu a propriedade de bens individuais básicos, necessários à sobrevivência imediata do individuo, da propriedade de meios de produção, como por exemplo terras, manufaturas, fábricas, maquinaria agrícola e outras que servem não só o propósito de garantir a sobrevivência dos indivíduos, mas também de aumentar num nível desproporcionado a riqueza dos detentores desse tipo de propriedade, estabelecendo por esse meio uma enorme desigualdade social que pode ser resumida numa expressão curta mas incisiva: os que têm e os que não têm (como se diz em língua inglesa the haves and the have nots)
Ora, neste segundo sentido, aquele que Marx referiu – propriedade privada dos meios de produção - temos de reconhecer que o número de proprietários tem sido, desde sempre, extremamente reduzido face à grande maioria da população que não tem qualquer controlo sobre os meios de produção e acaba por ter de sobreviver vendendo a sua capacidade de trabalho em troca de uma salário, pelo que é absurdo que alimente qualquer temor quanto à abolição da propriedade privada dos meios de produção: não pode temer perder aquilo que nunca possuiu.
Em relação a esta destrinça entre propriedade privada tout court e propriedade privada dos meios de produção convém à minoria, detentora desta ultima, ignora-la para que afinal se crie uma espécie de frente ampla que defenda pura e simplesmente o direito de propriedade privada.
Esta indiferenciação entre propriedade privada de meios de produção e propriedade privada de bens de usufruto serve o propósito de atemorizar as pessoas relativamente a qualquer teoria ou movimento político que proponha medidas tendentes à abolição, ou sequer à mitigação, da propriedade privada (dos meios de produção) porque, por esse meio, a maioria das pessoas julga que vai ser atingida por essas medidas. Teme ver-se despojada da sua habitação, do seu carro, da sua pequena horta, das suas ferramentas de trabalho, etc. Ora como refere W. Reich:
O conceito marxista de propriedade privada não se refere às camisas do homem, calças, máquinas de escrever, papel higiênico, livros, camas, poupanças, casas, bens imobiliários, etc. Este conceito foi usado exclusivamente por referência à propriedade privada dos meios sociais de produção, isto é, aqueles meios de produção que determinam o curso geral da sociedade. “ W. Reich
Como aqui se diz, os meios sociais de produção ‘determinam o curso geral da sociedade’, isto implica, para apontarmos uma situação ilustrativa, que, por exemplo, a eventual deslocalização de uma fábrica, decidida unilateralmente pelo proprietário, pode precipitar no desemprego e na pobreza toda uma comunidade, assim se vendo as repercussões que o regime de propriedade privada (dos meios sociais de produção) pode ter na vida das pessoas.
Todavia, o liberalismo e as democracias liberais contam com a duplicidade e equívoco entre propriedade privada e propriedade privada dos meios sociais de produção para hostilizar qualquer veleidade de instauração de um regime político socialista que constitua uma alternativa ao capitalismo, omitindo-se muito oportunamente que Karl Marx não criticou a existência de propriedade privada, criticou sim a existência de propriedade privada dos meios sociais de produção, que afinal se encontrava, e ainda encontra, nas mãos de uma elite, de uma minoria, que desse modo detém as alavancas do poder económico e de forma indireta do poder político, exercendo dominação sobre os restantes, ajudada pelo soft power dos meios de comunicação e divulgação de ideias.
Quer dizer, a abolição do regime de propriedade privada dos meios sociais de produção, isto é, do capitalismo, não tem nada a ver com a expropriação de bens de consumo ou de bens direcionados para o real usufruto por parte da pessoas com vista a sua vida e sobrevivência, só estão em causa os bens diretamente ligados à produção de outros bens, a uma determinada escala - que impactem decisivamente na vida social.
Ora os fazedores de opinião aproveitaram o facto de tanto uma camisa como a casa em que alguém vive ou uma empresa de caminhos de ferro serem propriedade privada para estabelecerem a confusão na cabeça das pessoas dizendo que o marxismo e o comunismo pretendem abolir a propriedade privada, omitindo que apenas pretendem abolir a propriedade privada dos meios sociais de produção, o que de facto não é pouca coisa e é uma ideia insuportável para aqueles poucos, mas influentes, que a detém.
Esta confusão serve o propósito pretendido: conseguir que temerosamente as populações, mesmo as mais humildes, receiem o comunismo/socialismo e fiquem mais recetivas á aceitação do sistema capitalista que se apresenta como a única alternativa credível porque lhes garantiria a manutenção da propriedade privada, mesmo se esta fosse apenas constituída pelos parcos haveres que possuem ou por uma residência da qual, via de regra, pagam empréstimo bancário sujeito a juros chorudos que os depenam durante a maior parte da sua existência.
Ora como acima referido, o que o marxismo preconiza é a socialização dos meios sociais de produção porque estes têm uma repercussão tal na vida de uma sociedade e da generalidade das pessoas que será no mínimo insensato permitir que uns poucos, uma minoria muito reduzida, uma elite, deles se aposse e consiga impor o rumo que toda a sociedade deve seguir, determinando o que se deve produzir, como e onde, ficando os restantes à mercê destas decisões que têm uma influencia decisiva nas suas vidas. Há ainda a agravante de que quem domina os meios sociais de produção tem um poder extraordinário de barganha sobre a restante população que permite a persistência da exploração do homem pelo homem, desde sempre existente, mas que se refinou extremamente com a implementação deste sistema para o qual é desejável e legitimo procurar alternativa.