Neoliberalismo e feminismo
O neoliberalismo desde cedo percebeu como era
importante ganhar a guerra cultural; temos disso a prova provada na invenção e
divulgação da novilíngua, uma espécie de revolução silenciosa de que nem sequer
nos apercebemos e também no apoio a uma nova tendência dentro do movimento
feminista que podemos apelidar de feminismo neoliberal.
Abro aqui um parêntesis para explicitar que a guerra
cultural, até ao momento ganha pelo neoliberalismo, basicamente tem por
objetivo mudar as mentalidades, construindo novas categorias concetuais que uma
vez assimiladas e utilizadas pelas pessoas no seu linguajar corrente alteram as
suas perceções, o seu modo de pensar a si mesmas e à realidade. David Harvey em A Brief History of
Neoliberalism chama a nossa atenção para
este fenómeno pelo qual o neoliberalismo conseguiu transformar, por via
discursiva, de forma pacífica e trivial, as suas ideias fortes em senso comum: aquilo que toda a gente afirma
e pensa sem se aperceber que está a reproduzir os estereótipos do sistema
neoliberal em que vive.
Neste contexto de matriz cultural, o neoliberalismo, não
podendo ignorar o feminismo, procurou cooptá-lo para a causa. Reconheceu que este
movimento atrai um número considerável de mulheres e de mulheres altamente
colocadas socialmente, e seguiu o velho ditado: se não podes vencer o inimigo,
junta-te a ele.
Como seria de esperar, privilegiou a
fação menos radical do feminismo, precisamente a do feminismo liberal, mas, mesmo
assim, ainda o expurgou da dimensão social e contestatária e empenhou-se,
sobretudo, na construção de uma nova subjetividade feminista.
Apostou num novo modo da mulher
feminista se perceber a si mesma. E de acordo com os princípios neoliberais,
esta vai perceber-se como um sujeito autónomo, responsável por si e pelas suas
opções; um sujeito que, por exemplo, pesa os custos/benefícios de se engajar
numa carreira profissional e decide livremente. É a racionalidade
neoliberal que fornece o modelo: a liberdade de escolha está garantida
(formalmente) e cabe a cada uma fazer o que bem entender com essa liberdade.
Assim, enquanto o feminismo liberal ainda
correspondeu a uma exigência e a uma crítica ao sistema liberal, que não estava
a reconhecer às mulheres os direitos que reivindicava para os homens e as excluía da
esfera pública, o feminismo neoliberal adapta-se ao sistema, ao qual não exige
nenhuma alteração, pelo que parece legítimo concluir que se vai colocar ao seu serviço
e não das próprias mulheres, achando provavelmente que este lhes convém e
responde às suas necessidades fundamentais.
Com esta posição, o feminismo
neoliberal, embora reconheça a desigualdade de género, dado o enquadramento
individualista em que se insere, esquece muito oportunamente o problema
estrutural da descriminação, esse sim complexo e impossível de resolver com meras
declarações formais. Pretende que serão as mulheres, individualmente falando,
que terão de lutar pelos seus direitos pois não atribui essa
desigualdade a fatores económicos, sociais e culturais, mas ao facto de as
próprias mulheres terem interiorizado impedimentos que afinal dependem delas
próprias para serem ultrapassados.
Este tipo de feminismo passa
completamente ao lado da análise das estruturas de poder que favorecem a
dominação masculina. Não reconhece que há estruturas sociais que
obstaculizam a igualdade de direitos entre homens e mulheres e atribui a culpa
pela não integração na vida política, no mercado de trabalho, etc., às próprias
mulheres, que teriam interiorizado barreiras inibidoras (cfr. Sandberg, Lean
In). Claro que fica por explicar porque é que as mulheres têm barreiras
interiores que as impedem de progredir na esfera pública, é tudo reduzido à fórmula
do “querer é poder” que muitas de nós aprendemos na mais tenra infância e de
que nunca mais nos livramos.
Claro que uma conceção
atomística de sociedade e a negação da existência das estruturas informais que
regulam e enquadram as relações sociais só pode dar no voluntarismo: as
mulheres não fazem mais porque não querem, não tem força de vontade …. Desse
modo, ‘escolha livre’, ‘igualdade de oportunidades’, ‘ponderação de
custos/benefícios’, são os chavões do feminismo neoliberal.
Com esse “aggiornamento”, o
neoliberalismo obteve um ganho acrescido, mostrou a modernidade da democracia
liberal que afinal, ao incluir também pautas feministas, corresponderia ao
melhor dos mundos possíveis, bastando para tal estabelecer comparação com
outros países que não são democracias liberais, nos quais as mulheres continuam
marginalizadas da vida social e política. Não foi proeza menor!