sexta-feira, 24 de março de 2023

 

Os pés de barro do liberalismo

O liberalismo é uma teoria política que podemos designar de idealista porque ignora a base material - nela incluídos os circunstancialismos históricos - que se encontram a montante das ideias e das formações políticas. Citemos alguns casos que confirmam esta asserção; por exemplo, o liberalismo:

·        Ignora que o princípio da ‘soberania popular’ só foi defendido pela revolução burguesa porque no momento histórico em que se vivia – finais da época moderna - era preciso incluir o povo no processo emancipatório relativamente ao poder monárquico absoluto, para que o movimento ganhasse expressão e saísse vitorioso. Mas logo de seguida torneou a questão e restringiu o direito de voto apenas aos proprietários. É certo que, posteriormente, a duras penas, o direito de voto foi alargado, mas as opções propostas passaram a ser entre a e b sendo a e b ‘farinha do mesmo saco’. Portanto, poderia legitimamente perguntar-se: como é que pode haver soberania popular se o povo sequer tem representação política ou se não existem reais opções?

·        Desconsidera que o princípio da ‘divisão tripartida do poder’ só foi defendido porque interessava tirar aos monarcas e aos seus acólitos aristocratas a concentração do poder; de seguida, que este se voltasse a concentrar nas mãos, agora, da burguesia, mas não do povo, era problema menor. Mas pode legitimamente colocar-se em questão que uma independência formal entre os poderes signifique independência real.

·        Omite que defende as ‘liberdades individuais’ porque percebe que não há qualquer perigo de que estas venham a pôr em risco os interesses dos indivíduos das classes privilegiadas porque são estes que têm condições materiais para delas usufruírem, Para os outros – a vasta maioria - serão liberdades formais de escasso ou mesmo nulo alcance. Todavia pode questionar-se o valor das liberdades individuais quando estas de facto são apenas para alguns.

·        Não admite que se recusa a aceitar a existência de classes sociais e só reconhece existência aos indivíduos isolados porque à elite interessa a atomização social que lhe é profundamente favorável: indivíduos isolados, competidores e indiferentes à sorte alheia não têm poder reivindicativo, não vão ser exigentes, não vão colocar em risco o sistema. Cumpre então perguntar, a quem afinal convém uma conceção individualista de sociedade?

·        Não quer perceber que, enquanto teoria política, se encontra vocacionado para a defesa dos interesses não de todos os indivíduos, que define formalmente como iguais e livres, mas tão simplesmente de uma classe social, no caso, a burguesia. É de indagar com que legitimidade se arroga o direito de se auto proclamar ’democrática’.

Os princípios acima referidos: ‘soberania popular’; ‘divisão tripartida dos poderes’; ‘individualismo’; ‘liberdades individuais’; ‘democracia’, são princípios fundamentais defendidos pelo liberalismo. Se se prova que estes princípios, tal como o liberalismo os apresenta, não resistem a uma análise crítica reveladora do viés que os coloca a serviço da elite dominante, que resta do liberalismo?  O que é que o distingue dos regimes totalitários que pretende execrar?

De resto já começamos a ver, em países liberais e civilizados, as ameaças de novos fascismos adaptados aos novos tempos e já começamos a ver partidos liberais a não rejeitarem a ideia de fazer alianças de governo com partidos de extrema direita. Isto permite prever que as elites, se virem ameaçados os seus interesses, não hesitarão em colaborar, embora a contragosto, com partidos de vocação totalitária: vão-se os anéis, mas fiquem os dedos.

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