segunda-feira, 24 de julho de 2023

 

Afinidades substantivas entre fascismo e capitalismo

É meu objetivo confirmar de forma consistente a tese, que já enunciei antes, de que a ameaça fascista é real porque as afinidades entre capitalismo e fascismo são mais relevantes do que as suas diferenças.

 Para atingir este objetivo, realço, por um lado, as ideias dominantes destas duas ideologias e, por outro, refiro as ambiguidades e conivências que o processo histórico recente, particularmente o da segunda guerra mundial e do pós-guerra, evidencia.

Quanto ao primeiro ponto – afinidades de fundo entre capitalismo e fascismo – nunca é demais chamar a atenção para o facto de que na base tanto do capitalismo quanto do fascismo se encontra a defesa intransigente da propriedade privada, particularmente da propriedade privada dos meios de produção, que configura um modelo económico que se opõe ao modelo socialista/comunista, o qual propõe limitações ao direito de propriedade privada e a estatização ou pelo menos o controlo do Estado sobre os mais básicos e importantes meios de produção.

Assim, bem vistas as coisas, a ordem económico e social defendida pelo fascismo não é no essencial diferente da ordem económico e social defendida pelo capitalismo e pelas democracias liberais. Em ambos os casos o inimigo público número um é o comunismo, tornado presente e fazendo-se lembrar através das reivindicações dos setores trabalhistas, que pretendem conter, podendo haver divergência na estratégia a utilizar.

Neste contexto tem plausibilidade a perceção de que o desentendimento na segunda guerra mundial entre estados nazi fascistas e outros estados capitalistas só ocorreu, só levou às vias de facto, dado o apetite voraz dos primeiros por zonas de domínio e influência que, se apropriadas, os tornariam rivais indesejavelmente muito poderosos; a partir daí, claro, houve necessidades de os transformar em símbolos do mal que era preciso extirpar, mesmo assim, sem grandes pressas e com muitas conivências à mistura.

Um outro facto histórico que podemos invocar para corroborar a tese de que entre capitalismo e fascismo há maiores afinidades do que divergências é o exemplo de que o partido fascista italiano, criado e liderado por Mussolini em 1921 foi subsidiado por capitalistas, ‘capitães da Indústria, e por grandes latifundiários e Mussolini foi alçado a primeiro ministro pela mão do então rei de Itália, Vitor Emanuel III – os factos falam por si, será preciso dizer mais?!

Alem disso, quem quer que faça uma análise minimamente imparcial dos relatos históricos relativos à segunda guerra mundial - e atenção não é esse o caso da maior parte dos filmes produzidos em Hollywood - tem de reconhecer que a grande obreira da vitória sobre o fascismo e o nazismo foi a União Soviética, não a Europa que passou boa parte dos anos da guerra submetida á Alemanha, perante a qual capitulou com demasiada facilidade, para não suscitar dúvidas sobre alguma, se não muita, complacência dos seus dirigentes; nem sequer foram os Estados Unidos que só entraram no conflito em fins de 1941, após o ataque japonês a Pearl Harbour (dezembro de 41) e só apoiaram o esforço de guerra na Europa a partir de Julho de 43, as datas falam por si para percebermos que, embora importante,  só vieram dar uma ajuda, depois da União Soviética ter feito a maior parte do trabalho, sofrendo pesadíssimas perdas em vidas e em recursos, incomparavelmente maiores que a dos outros países aliados.

Em relaçao à segunda guerra mundial, tudo aponta no sentido de que os países ocidentais teriam tolerado a expansão nazi alemã desde que esta se tivesse focado única e exclusivamente nos países do leste europeu, incluindo obviamente a União Soviética, pois seria um serviço não negligenciável que esta lhes prestaria.

De modo que a segunda guerra mundial, tal como a primeira, também revestiu a forma de um conflito entre dois blocos capitalistas, dos quais um deles - os chamados países do eixo - pretendia uma divisão mais equitativa do ’espaço vital’ e dos recursos, sendo a união soviética apanhada no meio do furacão e tendo de se aliar a um dos blocos, por uma questão de sobrevivência, para evitar a sua pura e simples destruição. Claro que, assinada a paz, começou a guerra fria … com os desenvolvimentos que se conhecem.

Curiosamente, porventura para disfarçar, o capitalismo e os capitalistas defendem uma perspetiva diferente e até antagónica, isto é, tentam mostrar afinidades entre fascismo e comunismo, insistindo não nas divergências radicais no plano económico e político, que são bem substantivas, mas mais propriamente em semelhanças no modus faciendi: autocracia e totalitarismo, esquecendo oportunamente que este – o modus faciendi - é mais conjuntural do que estrutural.

Para provar este ponto, lembro que, por exemplo, a adoção de medidas inibidoras das liberdades individuais por um determinado Estado - um dos aludidos sintomas de totalitarismo - pode ser motivada pelo contexto histórico, pela necessidade imperiosa de resistir a um Estado hostil muito mais poderoso; vide o caso de Cuba e do cerco que os Estados Unidos para ela representaram; no mesmo diapasão, o da Venezuela; ou ainda o caso da própria China e como, não tivesse havido essa precaução, teria sido fácil  ao imperialismo norte americano abalá-los, criar instabilidade interna, provocar cisões e cizânias  e anulá-los, inclusive enquanto estados soberanos e independentes, transformando-os em seus vassalos. Dividir para reinar é obviamente tarefa que está simplificada se a unidade for fraca, e o individualismo e as tão prezadas liberdades individuais têm esse aspeto curioso, são um luxo, muitas vezes mais aparente do que real, a que muitos mesmo assim não se podem dar porque os fragiliza e os torna presa fácil para aqueles que os querem dominar e transformar em marionetes ao seu dispor.

sábado, 22 de julho de 2023

 

Capitalismo e cumplicidades com o fascismo?[1]

A ascensão do fascismo nas primeiras décadas do século XX, como foi o caso, na Europa, da Itália (1922) Alemanha (1933), Portugal (1933), Espanha (1936) e, na Ásia, do Japão (início da década de trinta) não ocorreu num vácuo nem por qualquer acidente de percurso, foi a resposta que as elites capitalistas dirigentes encontraram para tornear a crise profunda que o sistema então enfrentou.

Essa crise foi provocada por vários fatores, entre os quais se destacaram as crises inflacionarias que se seguiram ao termo da primeira guerra mundial, com uma economia extremamente desorganizada, escassez de bens de primeira necessidade e desemprego maciço, ligado à desmobilização das tropas, antes envolvidas no conflito.

Estes fenómenos económicos e sociais – hiperinflação, escassez de bens, desemprego maciço geraram profundo descontentamento das populações aproveitado pelos movimentos de esquerda para desestabilizar o sistema produzindo reivindicações e agitação social. Como é obvio, as elites capitalistas não podiam ficar indiferentes a estes acontecimentos pois temiam não só o sucesso da revolução socialista soviética como anteviam a possibilidade desta se estender a outras geografias. Quer dizer todos estes fatores colaboraram no sentido de fazer tremer o sistema capitalista e as suas elites que nesse contexto percebiam que as democracias liberais com as suas liberdades formais e o seu estado de direito não seriam a ferramenta adequada para lidar de forma musculada com as dificuldades sentidas.

Não por acaso os países nos quais o fascismo se implantou com mais sucesso e força foram precisamente os grandes derrotados da primeira guerra mundial; a paz imposta foi humilhante para os vencidos e as elites desses países bem como as classes médias temiam que a instauração de regimes socialistas, alimentada pelo exemplo da união soviética, fosse bem-sucedida.

Mas não se pense que os países capitalistas não fascistas se distanciaram destes, como se impunha, dado apresentarem-se como democracias liberais; bem pelo contrário, mais ou menos abertamente mostraram, através de representantes ilustres, se não a sua simpatia pelo menos a sua compreensão por estes regimes, tanto antes da segunda guerra mundial como mesmo depois; lembremos, por exemplo, que o Portugal de Salazar, declaradamente fascista, foi membro fundador da NATO, organização que incorporou em 1949, apesar de ter sido  óbvia a simpatia do salazarismo para com o regime nazi. E isto aconteceu porque o fascismo garantia aberta e insistentemente o seu odio ao comunismo que era também o maior temor dos países capitalistas.

Numa outra dimensão foi o temor pelo socialismo que alimentou o estado de bem-estar social promovido pelas democracias liberais capitalistas do pós-guerra que tentaram prevenir conflitos e rebeliões sociais fazendo cedências comportáveis às suas populações trabalhadoras.

Temos assim que no decurso entre as duas Guerras o fascismo foi visto com um olhar benevolente pelas classes dirigentes da generalidade dos países capitalistas pois afinal era um aliado, embora incómodo, na luta contra o comunismo, que tanto temiam e diabolizavam, como o inimigo número um a abater. Por isso, apesar de insólito, compreende-se à luz do processo histórico a simpatia e compreensão de Churchill, campeão da democracia liberal ocidental, por Mussolini e por Hitler, e este é apenas um exemplo paradigmático.

Em relaçao à segunda guerra mundial, tudo aponta no sentido de que os países ocidentais teriam tolerado a expansão nazi alemã desde que esta se tivesse focado única e exclusivamente nos países do leste europeu, incluindo obviamente a união soviética, pois seria um serviço não negligenciável que esta lhes prestaria.

De modo que a segunda guerra mundial, tal como a primeira, também revestiu a forma de um conflito entre dois blocos capitalistas, dos quais um deles - os chamados países do eixo - pretendia uma divisão mais equitativa do ’espaço vital’ e dos recursos, sendo a união soviética apanhada no meio do furacão e tendo de se aliar a um dos blocos, por uma questão de sobrevivência, para evitar a sua pura e simples destruição. Claro que assinada a paz começou a guerra fria … com os desenvolvimentos que se conhecem.



[1] Aconselho a leitura do artigo “Capitalismo, fascismo e guerra “, de Jorge Cadima, in INTERNACIONAL, EDIÇÃO Nº 373 - JUL/AGO 2021, que me inspirou a escrever este texto.

 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

 

Revisitando o movimento fascista italiano da primeira metade do seculo XX

Antonio Gramsci (italiano) e José Carlos Mariátegui (peruano) representam uma ala do pensamento marxista que percebeu o fascismo (Itália 1922 Mussolini) como um movimento contra a luta e reivindicações do operariado italiano (socialista) cujas greves e ocupações de fábricas assustavam não só a elite burguesa, mas também a pequena burguesia. O movimento socialista era percebido como uma ameaça à democracia liberal e aos interesses da burguesia, que para o efeito contava com o apoio da pequena burguesia.

O fascismo italiano embora tivesse surgido inicialmente como um movimento de milícias prontas a atacar manifestações do operariado socialista, ascendeu ao poder com Mussolini, dado que este foi convidado pelo próprio rei de Itália a formar governo, ocupando o cargo de primeiro ministro.

Estes dois pensadores marxistas intuíram que a burguesia, receosa dos desenvolvimentos do movimento operário, iria preferir perder os anéis, mas ao menos salvar os dedos; sendo os anéis, metaforicamente falando, os direitos e liberdades que a democracia liberal prometia, e os dedos a sua riqueza que a persistência do sistema capitalista garantia.

Do lado do fascismo e dos fascistas, a base de apoio era a pequena burguesia, receosa da ameaça de proletarização; para a pequena burguesia, o fantasma do comunismo e do confisco da propriedade privada era o elemento mobilizador. A retórica do movimento fascista dirigia-se contra as elites, e por tal motivo dava-lhe uma aparência de antissistema, anticapitalista, mas de facto era apenas uma aparência, dado que em momento algum colocava verdadeiramente em causa os interesses do grande capital pois o seu inimigo era precisamente o socialismo, o operariado e suas reivindicações contra o qual assestava baterias.  

A interpretação de Gramsci e de Mariátegui foi clarividente e a extrema direita rapidamente percebeu que estava perante “elementos perigosos” a eliminar; em decorrência, tanto um como outro conheceram um destino trágico, o primeiro foi aprisionado às ordens de Mussolini em 1926 e morreu pouco depois de liberto em 1937; o segundo foi assassinado logo em 1930, aos 36 anos.

O clima social existente quando o fascismo italiano ascendeu ao poder  era um clima de desencanto das classes médias, particularmente médias baixas, com a democracia liberal e condições de vida então existentes: desemprego em alta, crise económica, falta de perspetivas de progressão social. Por outro lado, os próprios operários sentiram-se desiludidos com a tibieza dos líderes do movimento revolucionário em curso. Neste contexto, a demagogia fascista soube capitalizar o descontentamento destas camadas significativas da população, transformando o socialismo e os socialistas no inimigo a abater, o inimigo da nação, o bode expiatório do que corre mal - se forem derrotados tudo entrará novamente nos eixos.

Por seu turno, a elite capitalista rapidamente percebeu que tinha mais a ganhar do que a perder se apoiasse o fascismo e os fascistas; estes iriam fazer o trabalho sujo para ela e quando não mais fossem necessários poderiam ser descartados. Em circunstâncias difíceis, seria preciso sacrificar a democracia liberal que aliás era, como hoje continua sendo, de baixíssima intensidade.

Temos assim que a tese de que a base social do fascismo é pequeno burguesa, embora o back up seja o do grande capital - pormenor que é oportunamente subtraído - é bastante persuasiva.

Temos assim que o crescimento atual da extrema direita neofascista e sua incursão na área do poder político apresenta bastantes similitudes com as circunstâncias que propiciaram o desenvolvimento deste movimento no século passado.

Temos assim que deveríamos estar bem atentos para a história não se repetir!

Estaremos? Não me parece!

terça-feira, 18 de julho de 2023

 

A assim chamada ‘acumulação primitiva’

 

O que foi a acumulação primitiva?

Com que metodologia foi conseguida?

Que objetivos visava?

De que consequências se revestiu?

 

O processo de acumulação primitiva, indispensável à implantação do modo de produção capitalista, ocorreu na Inglaterra da época moderna e foi um processo de expropriação; para conhecermos o tipo de bens que dele foram objeto basta ler Marx que faz um relato acurado: 

“O roubo dos bens da Igreja, a fraudulenta alienação dos domínios do Estado, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpadora e executada com terrorismo inescrupuloso da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Eles conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado livre como os pássaros.”[1]

No contexto do capitalismo, de acordo com a terminologia sugestiva de Marx, o roubo, a alienação fraudulenta, o furto, a transformação usurpadora e o terrorismo inescrupuloso foram os procedimentos utilizados, eventualmente revestidos de aparências menos brutais, dependendo dos casos e das circunstâncias específicas, mas de qualquer modo muito distantes de quaisquer nobres pergaminhos que se pretenda reivindicar.

Para além da identificação a que procede, Marx lembra ainda que essas expropriações de terras tiveram como consequência o “despejo” daqueles que durante gerações nelas tinham vivido, que uma vez despejados se viram obrigados a emigrar para os centros urbanos constituindo desse modo uma mão de obra abundante e enquanto tal barata - o tal proletariado – que não tinha onde dormir nem o que comer, mas que era finalmente ‘livre como os pássaros …’

Numa palavra, a acumulação primitiva foi uma autêntica privataria[2]. De entre os objetos dessa privataria cabe uma referência específica à propriedade comunal, alvo de legislação aprovada no parlamento britânico, que Marx refere ironicamente como um progresso, já que tornava legal o roubo e a fraude, isto é, legitimava esses atos:

“O progresso do século XVIII consiste em a própria lei se tornar agora veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários empreguem paralelamente também seus pequenos e independentes métodos privados. A forma parlamentar do roubo é a das Bills for Inclosures of Commons (Leis para o cercamento da terra comunal), em outras palavras, decretos pelos quais os senhores fundiários fazem presente a si mesmos da terra do povo, como propriedade privada...” [3]

Claro que o Parlamento que votou as leis dos cercamentos só tinha como membros proprietários e estes só eram eleitos por proprietários dado que o direito de voto era basicamente censitário, daí que por intermedio dessas leis “os senhores fundiários fazem presente a si mesmos da terra do povo” ; aqui mais uma vez podemos ver como a democracia liberal, malgrado as suas promessas, funcionava para proteger interesses que nada tinham de democráticos.

De qualquer modo, o homem comum não cogitaria sequer reclamar até porque afinal o parlamento tinha representantes eleitos; ora os camponeses não eram proprietários o que tinham era nas suas aldeias e vilas, os seus cottages, vulgo cabanas, alguma escassa terra a que naturalmente recorriam para cultivo  de bens de subsistência, e, sobretudo, o acesso a terras comunais que podiam utilizar para pastagens, lenha para aquecimento e madeira para construção, e ainda caçarem pequenos animais para a sua alimentação.

Com as leis dos cercamentos essas terras ou melhor o acesso foi-lhes vedado e uma vez cercadas transitaram para os seus novos proprietários a quem eram entregues, ou como coutadas de caça ou com outros propósitos. Estima-se que com este processo dos cercamentos um quinto das terras da Grã-Bretanha passou para as mãos de privados com a exceção do que era reservado para a construção de ferrovias ou de outras infraestruturas.

Neste contexto, os camponeses, gozando da liberdade que a ideologia liberal generosamente lhes reconhecia em teoria - sem atender a que só há liberdade quando se superou a necessidade – viram-se compelidos/coagidos  pela dita necessidade a emigrar para as cidades em busca de um trabalho que lhes permitisse subsistir, trabalho esse que tinham mesmo de aceitar, fosse qual fosse o valor oferecido pelo patrão, pois de outra maneira, sem ocupação, seriam considerados vadios e lugar bom para vadio é como já sabemos na prisão, na época o ferrete  com ferro em brasa e em caso de reincidência a morte. A legislação sobre pobres e vadios e a sua criminalização foi célere em aparecer.

Muito sucintamente pode dizer-se que assim se construiu a base do modo de produção capitalista!



[1] Karl Marx, O Capital V. I p. 355

[2] O termo ‘privataria’ é um neologismo que resulta da fusão de privado com pirata.

[3] Karl Marx, idem, p. 348/49

domingo, 16 de julho de 2023

 

Capitalismo – expropriação e exploração constituíram o método

Grosso modo, pode dizer-se, seguindo Marx[1], que o ponto de partida do modo de produção capitalista foi aquilo que ele designou de “acumulação primitiva”.

A acumulação primitiva - no sentido de básica, de originária - permitiu que a burguesia, emergente a partir da época moderna, acumulasse riqueza, particularmente propriedade fundiária, para de seguida a transformar em capital, recorrendo à exploração do trabalho e dos trabalhadores.

Neste processo, há dois momentos intimamente imbricados a considerar: por um lado a apropriação pela que virá a ser a elite capitalista de bens indispensáveis à produção – os meios de produção – e por outro a privação da vasta massa da população desses mesmos meios de produção que garantiam a sua subsistência – terra e recursos nela contidos.

Desse modo os produtores diretos (trabalhadores) ficaram na dependência daqueles que passaram a deter a posse e propriedade dos meios de produção (patrões/capitalistas); obviamente que essa dependência vai criar condições para que aqueles que apenas possuem capacidade de trabalho sejam explorados em benefício daqueles que detém os meios de produção. 

Resumindo o capitalismo pressupôs expropriação e exploração, sendo que a primeira criou condições para que a segunda ocorresse. Este processo foi particularmente violento na Inglaterra dos fins da época moderna (séculos XVII e XVIII). Marx debruçou-se sobre ele e nós iremos revisitar esse cenário para procurar perceber como as coisas se passaram. 


P.S. Hoje em vez de 'expropriação' falaríamos em 'privatizações'

[1] Capítulo XXIV do Volume I de O Capital

 

sexta-feira, 14 de julho de 2023

 

Democracia e capitalismo - Contradição ou colaboração?!

A uma análise minimamente atenta, constata-se que as duas esferas da vida social, a política, - orientada para a organização e funcionamento das estruturas e instituições sociais, e a económica, orientada para a organização da esfera da produção e do consumo dos bens necessários à manutenção da vida se vão estruturar de forma não só diferente, como contraditória.

Na esfera política vai procurar instaurar-se, pelo menos formalmente, uma democracia, garantida por governos representativos e pela defesa formal da participação de todos os cidadãos, através do voto e dos partidos políticos. Na esfera económica, as decisões sobre como alocar recursos, organizar o trabalho e dispor dos lucros cabe apenas aos donos das empresas, aos empregadores, não aos empregados, que não têm ‘voto na matéria’. Numa palavra, a democracia política defende a igualdade política, o capitalismo supõe a desigualdade social e económica, desde logo a desigualdade entre quem manda e quem obedece, distinção esta baseada em quem detém os meios de produção e quem apenas dispõe da sua capacidade de trabalho.

O problema que tem de se colocar é o de saber se é possível harmonizar as duas esferas, e, nesse caso, como, ou se o conflito é inevitável e só pode ser resolvido pela anulação de um dos polos da contradição: a democracia ou o capitalismo.

A tese que aqui defendo é que não é possível harmonizar as duas esferas dado o conflito entre democracia e capitalismo ser de facto insanável; mas também defendo que tem sido possível até ao momento conseguir que ele não se revele um conflito dinâmico, fazendo-se passar a mensagem, a meu ver profundamente mistificadora, de que a esfera política goza de suficiente independência.

Esta tese da independência da esfera política vai completamente ao arrepio da conceção materialista histórica que defende com boas razões que a esfera da produção funciona como a infraestrutura material que condiciona, e até certo ponto determina, a esfera política - superestrutura. A revisitação do processo histórico permite constatar que esta esfera da vida social desde o início, séculos XVII e XVIII, se colocou ao serviço da económica, embora se tenha procurado escamotear esse facto.

Foi possível passar a mensagem de que a política é independente da economia porque, bem vistas as coisas, continua dominante, sobretudo através de instituições culturais, nomeadamente religiosas, uma interpretação idealista e voluntarista do processo histórico a qual ignora ostensivamente quanto as forças materiais, os modos de produção, influenciam a superestrutura política. O fenómeno é complexo e merece alguma reflexão.

É preciso perceber que a infraestrutura material não determina mecanicamente a superestrutura social e cultural, o que significa reconhecer que não basta existirem certas condições materiais, é preciso também que as condições culturais deem uma ajuda; se tal não for conseguido, o processo será extremamente difícil e pelo menos durante certo tempo - cuja duração não é previsível - pode nem ocorrer.

Um exemplo ilustra esta situação: não é por acaso que se fala em quarto poder em relaçao à comunicação social, porque através deste poder - soft power, como hoje se designa – convence-se as pessoas a pensarem de determinada maneira o que é tão importante quanto criar condições materiais que tornem possível uma mudança na forma de pensar. Isto para dizer que as condições materiais são necessárias, mas não são suficientes.

Se a democracia pressupõe igualdade e o capitalismo - a infraestrutura - supõe desigualdade profunda, a contradição é insanável, a menos que se adote uma visão idealista da histórica que está longe de ser empiricamente comprovável, carecendo, portanto, de fundamento científico. O caminho, até à data, tem sido o de ignorar o conflito, aquele que a grande maioria dos políticos das chamadas democracias liberais segue, uns de forma mais ou menos ingénua, outros nem tanto. Pretendem, mais ou menos ingenuamente também, que é a esfera política que, em última análise, “manda” na esfera económica, que a política goza de real independência face a esta porque os cidadãos, ao serem politicamente iguais, ao poderem votar, ao serem elegíveis para os cargos políticos, poderiam interferir, se assim o entendessem, na esfera económica, logo esta só é o que é porque aceitam, implicitamente, que corresponde ao melhor arranjo possível.

Todavia, se mais uma vez recorrermos ao laboratório que os factos históricos proporcionam, comprova-se efetivamente que o próprio liberalismo (teoria) e a democracia liberal (prática política) emanaram da necessidade de implantação e desenvolvimento do sistema capitalista que não se mostrava compatível com o predomínio de regimes políticos absolutistas. Era preciso acabar com classes sociais parasitárias cujos interesses obstaculizavam os da burguesia emergente e tal foi feito em nome de ideias nobres: liberdade, igualdade e democracia. Só que ninguém se lembrou de reparar que se tratava de liberdade, igualdade e democracia para a burguesia, para uma nova elite, para uma classe dominante com uma nova configuração - cujos interesses eram compatíveis com os interesses capitalistas. Esta nova elite  vai substituir o critério de "estatuto de nascimento" (que não lhe convém) pelo critério do "mérito" (que lhe é muito conveniente) sem reparar que tanto um como outro são excludentes, nada democráticos, e profundamente injustos do ponto de vista social, contribuindo para a prevalência de extrema miséria e desigualdade social – seria caso para dizer “as moscas mudam mas a merda é a mesma” (frase notável inventada por Brito Camacho para se referir a políticos do seu tempo – primeiras décadas do seculo XX).

Este novo arranjo político, a que chamaram pomposamente de democracia liberal tem muito pouco de democrático, e é nele que continuamos, enquanto o soft power nos convencer que não há alternativa e que este mundo em que vivemos é, à maneira leibniziana, o melhor dos mundos possíveis!!!

domingo, 2 de julho de 2023

 

Algumas reflexões sobre o populismo (de direita)

Os líderes populistas pertencem, como podemos facilmente constatar, a extratos privilegiados da sociedade. Lembremos Trump, multimilionário, mas também Boris Johnson ou até mesmo Jair Bolsonaro, no mínimo pertencentes à designada classe média/alta.

É assim algo paradoxal que estes líderes encontrem forte apoio nas classes populares mais vulneráveis e nos extratos da pequena burguesia, os quais teriam todos os motivos para neles não confiarem. Mas o facto é que conseguem convencê-los de que as suas atribulações e os seus inimigos são as classes populares de outos países, de outra raça, de outra etnia, de outra religião; para o efeito mobilizam sentimentos xenófobos, racista ou até mesmo sexistas, sempre prontos a aflorarem e a criarem uma qualquer forma de unanimismo e de identidade.

Isto acontece é certo porque, entretanto, o neoliberalismo teve o cuidado de destruir os núcleos organizados ligados à esquerda, que poderiam oferecer um contraponto a essa influência, como foi o caso do movimento sindical e dos empreendimentos cooperativos. Conta ainda com uma comunicação social nas mãos das elites dominantes que molda a opinião pública a seu bel prazer.

Neste contexto, as lideranças populistas conseguem mistificar as pessoas, levando-as a desvalorizar, ou mesmo a esquecer, as desigualdades económicas, que são de facto o que as marginaliza, para se centrarem nas desigualdades raciais, religiosas e culturais que, para o caso, são diferenças acessórias. Criam assim bodes expiatórios aos quais as pessoas passam a atribuir tudo o que de mau lhes acontece, que não mais é imputado ao sistema económico iníquo em que vivem. Claro que aos líderes não interessa que esse sistema seja posto em questão até porque beneficiam dele diretamente.

Em paralelo, continuando com a mistificação, lançam também as culpas à democracia que, alegam, não denota pulso forte ao permitir que essas outras classes populares se instalem no país e usufruam de benefícios que deviam ser reservados aos nacionais.

Este descrédito que lançam sobre a democracia é necessário, pois, uma vez descredibilizada, podem defender a autocracia como meio de retornar à ordem natural das coisas e de resolver os problemas.

Em síntese, o populismo (de direita) aproveita o vazio provocado pela demissão da esquerda para arregimentar os extratos populares que se tornam coniventes com uma agenda política que lhes é profundamente prejudicial. Em simultâneo destrói a democracia e instaura a autocracia e pelo caminho restaura os valores culturais que a favorecem: a religião, que tinha sido relegada pelo liberalismo para a esfera privada, volta a assumir um papel central; a família patriarcal, com os ‘meninos de azul’ e as ‘meninas de rosa’, retorna sub-repticiamente ao palco; e o nacionalismo, muito necessário para justificar guerras e conflitos que o sistema exija, volta a estar na ordem do dia.

Resumindo, o que o populismo pretende é o regresso ao passado que julgávamos já definitivamente superado. Pode acontecer que o consiga, pelo menos provisoriamente, e que nos estejam reservados maus bocados!  

  O que é a democracia liberal? – uma resposta breve Se quiséssemos sintetizar numa expressão breve o que é a democracia liberal poderíamo...