terça-feira, 18 de julho de 2023

 

A assim chamada ‘acumulação primitiva’

 

O que foi a acumulação primitiva?

Com que metodologia foi conseguida?

Que objetivos visava?

De que consequências se revestiu?

 

O processo de acumulação primitiva, indispensável à implantação do modo de produção capitalista, ocorreu na Inglaterra da época moderna e foi um processo de expropriação; para conhecermos o tipo de bens que dele foram objeto basta ler Marx que faz um relato acurado: 

“O roubo dos bens da Igreja, a fraudulenta alienação dos domínios do Estado, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpadora e executada com terrorismo inescrupuloso da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Eles conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado livre como os pássaros.”[1]

No contexto do capitalismo, de acordo com a terminologia sugestiva de Marx, o roubo, a alienação fraudulenta, o furto, a transformação usurpadora e o terrorismo inescrupuloso foram os procedimentos utilizados, eventualmente revestidos de aparências menos brutais, dependendo dos casos e das circunstâncias específicas, mas de qualquer modo muito distantes de quaisquer nobres pergaminhos que se pretenda reivindicar.

Para além da identificação a que procede, Marx lembra ainda que essas expropriações de terras tiveram como consequência o “despejo” daqueles que durante gerações nelas tinham vivido, que uma vez despejados se viram obrigados a emigrar para os centros urbanos constituindo desse modo uma mão de obra abundante e enquanto tal barata - o tal proletariado – que não tinha onde dormir nem o que comer, mas que era finalmente ‘livre como os pássaros …’

Numa palavra, a acumulação primitiva foi uma autêntica privataria[2]. De entre os objetos dessa privataria cabe uma referência específica à propriedade comunal, alvo de legislação aprovada no parlamento britânico, que Marx refere ironicamente como um progresso, já que tornava legal o roubo e a fraude, isto é, legitimava esses atos:

“O progresso do século XVIII consiste em a própria lei se tornar agora veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários empreguem paralelamente também seus pequenos e independentes métodos privados. A forma parlamentar do roubo é a das Bills for Inclosures of Commons (Leis para o cercamento da terra comunal), em outras palavras, decretos pelos quais os senhores fundiários fazem presente a si mesmos da terra do povo, como propriedade privada...” [3]

Claro que o Parlamento que votou as leis dos cercamentos só tinha como membros proprietários e estes só eram eleitos por proprietários dado que o direito de voto era basicamente censitário, daí que por intermedio dessas leis “os senhores fundiários fazem presente a si mesmos da terra do povo” ; aqui mais uma vez podemos ver como a democracia liberal, malgrado as suas promessas, funcionava para proteger interesses que nada tinham de democráticos.

De qualquer modo, o homem comum não cogitaria sequer reclamar até porque afinal o parlamento tinha representantes eleitos; ora os camponeses não eram proprietários o que tinham era nas suas aldeias e vilas, os seus cottages, vulgo cabanas, alguma escassa terra a que naturalmente recorriam para cultivo  de bens de subsistência, e, sobretudo, o acesso a terras comunais que podiam utilizar para pastagens, lenha para aquecimento e madeira para construção, e ainda caçarem pequenos animais para a sua alimentação.

Com as leis dos cercamentos essas terras ou melhor o acesso foi-lhes vedado e uma vez cercadas transitaram para os seus novos proprietários a quem eram entregues, ou como coutadas de caça ou com outros propósitos. Estima-se que com este processo dos cercamentos um quinto das terras da Grã-Bretanha passou para as mãos de privados com a exceção do que era reservado para a construção de ferrovias ou de outras infraestruturas.

Neste contexto, os camponeses, gozando da liberdade que a ideologia liberal generosamente lhes reconhecia em teoria - sem atender a que só há liberdade quando se superou a necessidade – viram-se compelidos/coagidos  pela dita necessidade a emigrar para as cidades em busca de um trabalho que lhes permitisse subsistir, trabalho esse que tinham mesmo de aceitar, fosse qual fosse o valor oferecido pelo patrão, pois de outra maneira, sem ocupação, seriam considerados vadios e lugar bom para vadio é como já sabemos na prisão, na época o ferrete  com ferro em brasa e em caso de reincidência a morte. A legislação sobre pobres e vadios e a sua criminalização foi célere em aparecer.

Muito sucintamente pode dizer-se que assim se construiu a base do modo de produção capitalista!



[1] Karl Marx, O Capital V. I p. 355

[2] O termo ‘privataria’ é um neologismo que resulta da fusão de privado com pirata.

[3] Karl Marx, idem, p. 348/49

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