Democracia
e capitalismo - Contradição ou colaboração?!
A uma análise minimamente
atenta, constata-se que as duas esferas da vida social, a política, - orientada
para a organização e funcionamento das estruturas e instituições sociais,
e a económica, orientada para a organização da esfera da produção e do consumo
dos bens necessários à manutenção da vida se vão estruturar de forma não só
diferente, como contraditória.
Na esfera política vai procurar
instaurar-se, pelo menos formalmente, uma democracia, garantida por governos
representativos e pela defesa formal da participação de todos os cidadãos,
através do voto e dos partidos políticos. Na esfera económica, as decisões
sobre como alocar recursos, organizar o trabalho e dispor dos lucros cabe apenas
aos donos das empresas, aos empregadores, não aos empregados, que não têm ‘voto
na matéria’. Numa palavra, a democracia política defende a igualdade
política, o capitalismo supõe a desigualdade social e económica, desde logo a
desigualdade entre quem manda e quem obedece, distinção esta baseada em quem
detém os meios de produção e quem apenas dispõe da sua capacidade de trabalho.
O problema que tem de se colocar é o de saber se é
possível harmonizar as duas esferas, e, nesse caso, como, ou se o conflito é
inevitável e só pode ser resolvido pela anulação de um dos polos da contradição:
a democracia ou o capitalismo.
A tese que aqui defendo é que não é possível
harmonizar as duas esferas dado o conflito entre democracia e capitalismo ser de
facto insanável; mas também defendo que tem sido possível até ao momento conseguir
que ele não se revele um conflito dinâmico, fazendo-se passar a mensagem, a meu
ver profundamente mistificadora, de que a esfera política goza de suficiente independência.
Esta tese da independência da esfera política vai
completamente ao arrepio da conceção materialista histórica que defende com
boas razões que a esfera da produção funciona como a infraestrutura material
que condiciona, e até certo ponto determina, a esfera política - superestrutura. A revisitação do processo histórico permite constatar que
esta esfera da vida social desde o início, séculos XVII e XVIII, se colocou ao
serviço da económica, embora se tenha procurado escamotear esse facto.
Foi possível passar a mensagem de que a política é
independente da economia porque, bem vistas as coisas, continua dominante,
sobretudo através de instituições culturais, nomeadamente religiosas, uma
interpretação idealista e voluntarista do processo histórico a qual ignora ostensivamente
quanto as forças materiais, os modos de produção, influenciam a superestrutura política.
O fenómeno é complexo e merece alguma reflexão.
É preciso perceber que a infraestrutura material não
determina mecanicamente a superestrutura social e cultural, o que significa reconhecer
que não basta existirem certas condições materiais, é preciso também que as
condições culturais deem uma ajuda; se tal não for conseguido, o processo será
extremamente difícil e pelo menos durante certo tempo - cuja duração não é
previsível - pode nem ocorrer.
Um exemplo ilustra esta situação: não é por acaso que
se fala em quarto poder em relaçao à comunicação social, porque através deste
poder - soft power, como hoje se designa – convence-se as pessoas a pensarem de
determinada maneira o que é tão importante quanto criar condições materiais que
tornem possível uma mudança na forma de pensar. Isto para dizer
que as condições materiais são necessárias, mas não são suficientes.
Se a democracia pressupõe igualdade e o capitalismo - a
infraestrutura - supõe desigualdade profunda, a contradição é insanável, a
menos que se adote uma visão idealista da histórica que está longe de ser
empiricamente comprovável, carecendo, portanto, de fundamento científico. O
caminho, até à data, tem sido o de ignorar o conflito, aquele que a grande maioria dos
políticos das chamadas democracias liberais segue, uns de forma mais ou menos ingénua,
outros nem tanto. Pretendem, mais ou
menos ingenuamente também, que é a esfera política que, em última análise, “manda”
na esfera económica, que a política goza de real independência face a esta porque
os cidadãos, ao serem politicamente iguais, ao poderem votar, ao serem
elegíveis para os cargos políticos, poderiam interferir, se assim o entendessem,
na esfera económica, logo esta só é o que é porque aceitam, implicitamente, que
corresponde ao melhor arranjo possível.
Todavia, se mais uma
vez recorrermos ao laboratório que os factos históricos proporcionam,
comprova-se efetivamente que o próprio liberalismo (teoria) e a democracia
liberal (prática política) emanaram da necessidade de implantação e
desenvolvimento do sistema capitalista que não se mostrava compatível com o
predomínio de regimes políticos absolutistas. Era preciso acabar com classes
sociais parasitárias cujos interesses obstaculizavam os da burguesia emergente
e tal foi feito em nome de ideias nobres: liberdade, igualdade e democracia. Só
que ninguém se lembrou de reparar que se tratava de liberdade, igualdade e
democracia para a burguesia, para uma nova elite, para uma classe dominante com
uma nova configuração - cujos interesses eram compatíveis com os interesses capitalistas.
Esta nova elite vai substituir o
critério de "estatuto de nascimento" (que não lhe convém) pelo critério do "mérito" (que lhe é muito conveniente) sem reparar que tanto um como outro são excludentes,
nada democráticos, e profundamente injustos do ponto de vista social,
contribuindo para a prevalência de extrema miséria e desigualdade social –
seria caso para dizer “as moscas mudam mas a merda é a mesma” (frase notável
inventada por Brito Camacho para se referir a políticos do seu tempo –
primeiras décadas do seculo XX).
Este novo arranjo político, a que chamaram
pomposamente de democracia liberal tem muito pouco de democrático, e é nele que
continuamos, enquanto o soft power nos convencer que não há alternativa e que
este mundo em que vivemos é, à maneira leibniziana, o melhor dos mundos possíveis!!!
Pois, li. O texto é complexo porque recorre a conceitos que poucas pessoas dominam. De todo o modo, concordo com o diagnóstico apresentado, só não estou a ver o que possa ser feito para pelo menos minorar os danos desta contradição insanável. O poder político está totalmente na mão dos poderes económicos, a democracia é hoje uma mera formalidade. Temos a saúde do planeta a ir para o galheiro e ninguém quer saber. Temos uma guerra estúpida e ninguém quer saber. Temos os mérdia a venderem-nos o peixe que o poder económico dita, com uns senhores e umas senhoras muito bonitas a cagar sentenças. Temos uma inflação galopante. Temos uma exacerbação das desigualdades económicas, nunca vista, pelo menos na Europa. E temos um clima de angústia, de ansiedade e de "salva-se quem puder". Asssim, o que eu digo é que só tenho uma vida, pago as minhas cotas mensais do Partido em que me filiei e trato de mim e da mão cheia de pessoas de quem gosto. Agora, mais políticas? Não me assiste.
ResponderEliminarEm relaçao à questão que coloca o que me apraz dizer é: se, e quando, a estratégia de convencimento falhar, a contradição entre democracia e capitalismo vai gerar uma dinâmica de mudança completamente avessa aos interesses capitalistas. Deveria ser nisto que os políticos e pensadores de esquerda deveriam apostar, mas se calhar primeiro vai ainda ser preciso percorrer o caminho das pedras porque tudo aponta para um interregno fascista que infelizmente podemos não saber como evitar por pura ignorância e falta de preparo intelectual. Lembremos, por exemplo, que as revoluções liberais foram antecedidas não só por transformações a nível da produção material, mas também por obras que desenvolveram novas ideias acerca do mundo e da vida e anteciparam o futuro. É este elam que atualmente está em falta e ninguém parece preocupar-se, nem mesmo aqueles que tem algumas poucas luzes de marxismo, pois como sabemos o estudo desta corrente de pensamento foi completamente banida das escolas. Assim, torna-se imperioso procurar meios (media) alternativos; numa palavra: é preciso furar o bloqueio! Se permanecermos nesta pasmaceira, as coisas continuarão a acontecer, mas nós, humanos, não seremos protagonistas dos acontecimentos, apenas espectadores, submetidos claro aos seus efeitos.
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