sexta-feira, 14 de julho de 2023

 

Democracia e capitalismo - Contradição ou colaboração?!

A uma análise minimamente atenta, constata-se que as duas esferas da vida social, a política, - orientada para a organização e funcionamento das estruturas e instituições sociais, e a económica, orientada para a organização da esfera da produção e do consumo dos bens necessários à manutenção da vida se vão estruturar de forma não só diferente, como contraditória.

Na esfera política vai procurar instaurar-se, pelo menos formalmente, uma democracia, garantida por governos representativos e pela defesa formal da participação de todos os cidadãos, através do voto e dos partidos políticos. Na esfera económica, as decisões sobre como alocar recursos, organizar o trabalho e dispor dos lucros cabe apenas aos donos das empresas, aos empregadores, não aos empregados, que não têm ‘voto na matéria’. Numa palavra, a democracia política defende a igualdade política, o capitalismo supõe a desigualdade social e económica, desde logo a desigualdade entre quem manda e quem obedece, distinção esta baseada em quem detém os meios de produção e quem apenas dispõe da sua capacidade de trabalho.

O problema que tem de se colocar é o de saber se é possível harmonizar as duas esferas, e, nesse caso, como, ou se o conflito é inevitável e só pode ser resolvido pela anulação de um dos polos da contradição: a democracia ou o capitalismo.

A tese que aqui defendo é que não é possível harmonizar as duas esferas dado o conflito entre democracia e capitalismo ser de facto insanável; mas também defendo que tem sido possível até ao momento conseguir que ele não se revele um conflito dinâmico, fazendo-se passar a mensagem, a meu ver profundamente mistificadora, de que a esfera política goza de suficiente independência.

Esta tese da independência da esfera política vai completamente ao arrepio da conceção materialista histórica que defende com boas razões que a esfera da produção funciona como a infraestrutura material que condiciona, e até certo ponto determina, a esfera política - superestrutura. A revisitação do processo histórico permite constatar que esta esfera da vida social desde o início, séculos XVII e XVIII, se colocou ao serviço da económica, embora se tenha procurado escamotear esse facto.

Foi possível passar a mensagem de que a política é independente da economia porque, bem vistas as coisas, continua dominante, sobretudo através de instituições culturais, nomeadamente religiosas, uma interpretação idealista e voluntarista do processo histórico a qual ignora ostensivamente quanto as forças materiais, os modos de produção, influenciam a superestrutura política. O fenómeno é complexo e merece alguma reflexão.

É preciso perceber que a infraestrutura material não determina mecanicamente a superestrutura social e cultural, o que significa reconhecer que não basta existirem certas condições materiais, é preciso também que as condições culturais deem uma ajuda; se tal não for conseguido, o processo será extremamente difícil e pelo menos durante certo tempo - cuja duração não é previsível - pode nem ocorrer.

Um exemplo ilustra esta situação: não é por acaso que se fala em quarto poder em relaçao à comunicação social, porque através deste poder - soft power, como hoje se designa – convence-se as pessoas a pensarem de determinada maneira o que é tão importante quanto criar condições materiais que tornem possível uma mudança na forma de pensar. Isto para dizer que as condições materiais são necessárias, mas não são suficientes.

Se a democracia pressupõe igualdade e o capitalismo - a infraestrutura - supõe desigualdade profunda, a contradição é insanável, a menos que se adote uma visão idealista da histórica que está longe de ser empiricamente comprovável, carecendo, portanto, de fundamento científico. O caminho, até à data, tem sido o de ignorar o conflito, aquele que a grande maioria dos políticos das chamadas democracias liberais segue, uns de forma mais ou menos ingénua, outros nem tanto. Pretendem, mais ou menos ingenuamente também, que é a esfera política que, em última análise, “manda” na esfera económica, que a política goza de real independência face a esta porque os cidadãos, ao serem politicamente iguais, ao poderem votar, ao serem elegíveis para os cargos políticos, poderiam interferir, se assim o entendessem, na esfera económica, logo esta só é o que é porque aceitam, implicitamente, que corresponde ao melhor arranjo possível.

Todavia, se mais uma vez recorrermos ao laboratório que os factos históricos proporcionam, comprova-se efetivamente que o próprio liberalismo (teoria) e a democracia liberal (prática política) emanaram da necessidade de implantação e desenvolvimento do sistema capitalista que não se mostrava compatível com o predomínio de regimes políticos absolutistas. Era preciso acabar com classes sociais parasitárias cujos interesses obstaculizavam os da burguesia emergente e tal foi feito em nome de ideias nobres: liberdade, igualdade e democracia. Só que ninguém se lembrou de reparar que se tratava de liberdade, igualdade e democracia para a burguesia, para uma nova elite, para uma classe dominante com uma nova configuração - cujos interesses eram compatíveis com os interesses capitalistas. Esta nova elite  vai substituir o critério de "estatuto de nascimento" (que não lhe convém) pelo critério do "mérito" (que lhe é muito conveniente) sem reparar que tanto um como outro são excludentes, nada democráticos, e profundamente injustos do ponto de vista social, contribuindo para a prevalência de extrema miséria e desigualdade social – seria caso para dizer “as moscas mudam mas a merda é a mesma” (frase notável inventada por Brito Camacho para se referir a políticos do seu tempo – primeiras décadas do seculo XX).

Este novo arranjo político, a que chamaram pomposamente de democracia liberal tem muito pouco de democrático, e é nele que continuamos, enquanto o soft power nos convencer que não há alternativa e que este mundo em que vivemos é, à maneira leibniziana, o melhor dos mundos possíveis!!!

2 comentários:

  1. Pois, li. O texto é complexo porque recorre a conceitos que poucas pessoas dominam. De todo o modo, concordo com o diagnóstico apresentado, só não estou a ver o que possa ser feito para pelo menos minorar os danos desta contradição insanável. O poder político está totalmente na mão dos poderes económicos, a democracia é hoje uma mera formalidade. Temos a saúde do planeta a ir para o galheiro e ninguém quer saber. Temos uma guerra estúpida e ninguém quer saber. Temos os mérdia a venderem-nos o peixe que o poder económico dita, com uns senhores e umas senhoras muito bonitas a cagar sentenças. Temos uma inflação galopante. Temos uma exacerbação das desigualdades económicas, nunca vista, pelo menos na Europa. E temos um clima de angústia, de ansiedade e de "salva-se quem puder". Asssim, o que eu digo é que só tenho uma vida, pago as minhas cotas mensais do Partido em que me filiei e trato de mim e da mão cheia de pessoas de quem gosto. Agora, mais políticas? Não me assiste.

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  2. Em relaçao à questão que coloca o que me apraz dizer é: se, e quando, a estratégia de convencimento falhar, a contradição entre democracia e capitalismo vai gerar uma dinâmica de mudança completamente avessa aos interesses capitalistas. Deveria ser nisto que os políticos e pensadores de esquerda deveriam apostar, mas se calhar primeiro vai ainda ser preciso percorrer o caminho das pedras porque tudo aponta para um interregno fascista que infelizmente podemos não saber como evitar por pura ignorância e falta de preparo intelectual. Lembremos, por exemplo, que as revoluções liberais foram antecedidas não só por transformações a nível da produção material, mas também por obras que desenvolveram novas ideias acerca do mundo e da vida e anteciparam o futuro. É este elam que atualmente está em falta e ninguém parece preocupar-se, nem mesmo aqueles que tem algumas poucas luzes de marxismo, pois como sabemos o estudo desta corrente de pensamento foi completamente banida das escolas. Assim, torna-se imperioso procurar meios (media) alternativos; numa palavra: é preciso furar o bloqueio! Se permanecermos nesta pasmaceira, as coisas continuarão a acontecer, mas nós, humanos, não seremos protagonistas dos acontecimentos, apenas espectadores, submetidos claro aos seus efeitos.

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