sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

 

O que é a democracia liberal? – uma resposta breve

Se quiséssemos sintetizar numa expressão breve o que é a democracia liberal poderíamos dizer: é um sistema político que através do sufrágio universal consegue eleger governantes que representam os interesses da elite dominante, com o apoio do povo expresso nas urnas  Isto acontece porque o povo, a maioria dos cidadãos, é o público alvo de uma comunicação social – propriedade dessa mesma elite - que tem por principal objetivo desinformar as audiências, manipulando alguns dados informativos, omitindo outros, divulgando ‘informações’ que não verificou previamente, enfim, as técnicas são muitas e bem conhecidas dos ‘jornalistas’ de serviço que garantem o emprego, fazendo ‘bem’ o seu trabalho.

Daqui se segue que parece muito plausível concordar com as palavras de Raúl Zibechi quando manifesta:

“… a convicção de que não existe algo chamado democracia, se é que alguma vez existiu. A partir do momento em que as opiniões e vontades das pessoas são moldadas e manipuladas por gigantescas maquinarias que escapam de qualquer controle que não seja o das classes dominantes, entrar no jogo eleitoral não tem futuro.” Raúl Zibechi, 2023

De facto, o melhor será descredibilizar o jogo, denunciando a viciação das regras e não participando nele, a fim de não legitimar o que não é legitimável. 

sábado, 14 de outubro de 2023

 

Capitalismo e mercado – riscos e perplexidades

O modo capitalista de produção, centrado na propriedade privada dos meios de produção e na transformação do trabalho em mercadoria, visa o lucro como objetivo prioritário do capitalista.

Malgrado este último aspeto – lucro como objetivo prioritário - defende que o mercado, onde compradores e vendedores interagem, é o instrumento ideal para regular de modo espontâneo todo o processo produtivo; devendo para tal ser livre de interferências estranhas, nomeadamente da interferência e controlo do Estado - a liberdade do mercado é uma espécie de dogma. O pressuposto é que espontânea e livremente vendedores e compradores tomarão decisões que permitirão estabelecer de forma harmónica e equilibrada o valor de troca dos produtos apresentados, de acordo com a lei da oferta e da procura.

Segundo esta lei, o valor de troca do produto dependerá da quantidade disponível (oferta) e do maior ou menor interesse dos compradores em adquiri-lo (procura). Quer dizer, é o mercado que forma o preço e tal é defensável porque o mercado autorregula-se espontaneamente.

Através desta narrativa, que tem sido constantemente inculcada, o mercado é apresentado como uma instituição autónoma que corresponde a uma realidade universal e, sempre que se quer cercear as críticas aos rumos da economia, entra em ação. Assim, por exemplo, diz-se que o poder político não pode/deve controlar os preços dos produtos de primeira necessidade – tabelar preços – porque a resposta dos mercados a tal medida seria avassaladora. Diz-se por exemplo que o que deve condicionar a subida ou descida dos juros deve ser o funcionamento do mercado, não as necessidades das pessoas. E dizem-se muitas outras coisas …

Tudo se passa como se os mercados fossem extraterrestres e nada houvesse a fazer a não ser segui-los obedientemente, esconde-se desse modo que são em primeira e em última instância controlados por interesses de determinadas pessoas: banqueiros, grandes corporações, grandes proprietários fundiários, numa palavra, a elite económica dominante. O que se passa com o mercado no ramo dos bens de primeira necessidade, acima referido, ocorre do mesmo modo com os mercados financeiros que, sob o carimbo da autorregulação, sobem e baixam taxas de juros em conformidade com os interesses de grupos económicos e de conjunturas históricas e políticas, o que obviamente aponta no sentido da sua manipulação.

Por isso, de facto, tem de se admitir que o mercado aqui em referência não é uma realidade universal e intemporal, mas antes uma construção  histórica situada no tempo e no espaço, que se revela útil ao sistema capitalista porque, sob um nome respeitável, esconde interesses inconfessáveis. 


segunda-feira, 2 de outubro de 2023

 

Democracia liberal capitalista - uma contradição nos termos

A crítica às democracias liberais pode ser formulada através de um conjunto de perguntas retóricas - as tais que induzem de forma enfática a resposta.

Assim, por exemplo, pode bem perguntar-se se é possível considerar democráticos países:

- Que não investem em serviços públicos essenciais, tais como educação, saúde e segurança social;

- Em que a desigualdade e a injustiça social são gritantes;

- Nos quais os negócios dos privados prosperam escandalosamente enquanto a maioria da população se vê em sérias aflições para sobreviver;

- E cereja no topo do bolo, países nos quais os Media estão concentrados nas mãos de meia dúzia de corporações que constroem as narrativas de acordo com os interesses das elites dominantes.

A resposta parece óbvia, não podem: não são de facto democracias porque nestas governa o povo, no mínimo através de representantes que levam a sério o interesse deste e não o de meia dúzia de figurões – o povo é quem mais ordena, como dizia o poeta!

Por isto, na impossibilidade prática de mudar o nome, acrescentemos sempre: democracias liberais capitalistas; esta designação denuncia a farsa, na justa medida em que ela própria contém uma contradição nos termos. Até pelo modus faciendi, o capitalismo encontra-se nos antípodas da democracia, daí que uma democracia capitalista é um absurdo, um oxímoro, como dizem os mais eruditos…

Mas lamentavelmente nem todos se colocam essas questões, nem todos são bons em lógica e, como existem partidos políticos, eleições e representantes eleitos, etc. acabam por tomar as aparências por realidade, ou porque lhes dá jeito e apazigua as suas consciências, ou porque não percebem o embuste, ou porque, se percebem, já se resignaram e procuram o conforto do reino dos céus.

E assim vai o mundo!!!

domingo, 17 de setembro de 2023

 

Sobre o Movimento Woke e a Teoria Racial Crítica

Um dos aspetos do movimento Woke que mais enfurece o liberalismo e o conservadorismo cultural é o recurso e a divulgação dos princípios defendidos pela teoria racial critica, surgida nos Estados Unidos na década de oitenta do século passado e atualmente muito divulgada. Vejamos esses princípios, para de seguida concluirmos da sua ou não pertinência.

A Teoria racial crítica:

·        Identifica a população branca como privilegiada, alegando que a diferença racial sempre foi e continua a ser fonte de desigualdade social.

·        Defende que o racismo é sistémico e está na origem da opressão; que não é conjuntural, mas estrutural; ou seja, o racismo não é um preconceito que certos indivíduos manifestam, é algo bem mais profundo.

·        Considera que o racismo se manifesta na linguagem, nas ideias e nos comportamentos e práticas sociais; por exemplo, o facto de a população carcerária negra ser extremamente mais elevada que a branca é um sintoma de racismo existente na América.

·        Percebe a não discriminação como um verniz formal que não tem expressão na prática; as práticas continuam a ser discriminatórias: nas escolas, nos empregos, nas condenações criminais, etc.  

·        Conclui que aqueles que negam a supremacia branca ou o racismo sistémico e a discriminação devem ser considerados racistas; só negam estas realidades para que elas continuem a existir porque percebem que para as erradicar será preciso reconhecê-las primeiro e tomar em seguida as medidas necessárias.

Esta teoria, que encontra a diferença racial na origem da discriminação e desigualdade de tratamento a que os negros são sujeitos é suportada por forte evidência empírica e compete a quem não a aceitar o ónus da prova; todavia, há quem se lhe oponha e pretenda ver na origem dessa discriminação tão somente uma situação de inferioridade social dos negros em relaçao aos brancos: piores condições de habitação, de cuidados médicos, de escolarização. Mas esta resposta é falaciosa (beg de question) porque obriga a perguntar porque é que isso acontece, e não se encontra outra explicação a não ser o racismo sistémico que de facto desde sempre tem existido no país e que nunca foi seriamente encarado e contrariado a fim de se encontrarem soluções adequadas para o resolver.

Portanto dizer que esta teoria não deve ser ensinada nas escolas nem divulgada porque divide a sociedade norte americana e é elemento de desunião, bla bla bla, seria constrangedor se não fosse escandaloso! Todavia, grande parte da sociedade americana não vê o escândalo e culpa as vítimas por denunciarem o crime de que são vítimas. E não se pense que tal só acontece com a direita republicana mais ou menos extremista, também parte da esquerda democrática se sente desconfortável com o assunto e lá vai criticando o que designa de exageros e fanatismos. Um fenómeno lamentável a qualquer título.  


sábado, 16 de setembro de 2023

 Guerra cultural anti woke

Lutas antirracistas e anti sexistas, ou pelo menos algumas das suas manifestações, eram vistas até há pouco como casos exemplares de justiça social; todavia, mais recentemente, passaram a ser percebidas por alguns setores, que, digamos assim, ganharam coragem para ‘sair do armário’, como radicalismos perfeitamente despropositados e enquanto tal carentes de legitimidade. Esta reação coincide com o avanço da extrema direita a que estamos assistindo, estimulado pelas dificuldades que as democracias liberais estão a encontrar junto do eleitorado que tende a culpar os políticos e as políticas pelos problemas com que as pessoas se deparam no seu quotidiano.

É neste contexto que se situa a guerra cultural anti woke que mobiliza algumas camadas da sociedade e que de certa maneira funciona como uma manobra para desviar a atenção das pessoas atingindo alvos que podem funcionar como bodes expiatórios. Se indagarmos do extrato político e social dessas camadas confirmamos que maioritariamente estamos perante extratos conservadores, ligados ao pensamento de direita e de extrema direita, embora neste caso também inclua pessoas ligadas à esquerda liberal, eventualmente, agastadas com certas atitudes e posições que consideram excessivas e desproporcionadas.  

Para normalizar o racismo, o sexismo e outros tipos de discriminação é muito conveniente fazer passar a mensagem de que todos aqueles e aquelas que lutam contra estes fenómenos são anormais; desse modo e por contraposição, estes mesmos fenómenos passam a ser percebidos como normais. Continuar a usar linguagem que deprecia um povo de determinada raça ou grupo social ou continuar a objetificar as mulheres serão coisas inocentes e perfeitamente normais, só um anormal, destituído de senso comum e de sentido de humor nelas irá reparar.

Neste contexto esquece-se que o difícil não é ser racista ou sexista, o difícil é ser contra, ou seja, contrariar a tendência que temos para desenvolver uma mentalidade racista, sexista (e, em última análise, fascista), sobretudo, se estivermos do lado da barricada que sai, ou julga sair, beneficiada com essas posições. Por exemplo, os brancos pobres podem sentir que a sua autoimagem é positivamente reforçada pela existência de outros indivíduos que ainda ocupam um lugar mais baixo na escala social.

Se o objetivo é normalizar o racismo e outros tipos de discriminação negativa denunciando como anormais, porque extremistas, dogmáticos e fanáticos, aqueles que os denunciam, a estratégia consiste em procurar chamar a atenção para procedimentos de elementos do movimento Woke que, alegam, apontam para essa anormalidade. Nesse sentido, os críticos do movimento Woke acusam-no de dois pecados capitais: recorrer ao que designam de política do cancelamento e a medidas tendentes a coartar a liberdade de expressão de pensamento das pessoas que deles discordam; e assumem desse modo o papel de vítimas.

Todavia, quando, numa primeira abordagem, consulto o Google para me informar sobre a ideologia e cultura Woke, vejo inúmeras publicações que fazem uma avaliação negativa do movimento e não encontro praticamente nenhuma neutra e muito menos positiva. No mínimo é preocupante e parece mostrar que afinal quem está a ser cancelado são os representantes e defensores deste movimento e não os seus detratores. Acusam-no de ser uma espécie de veneno que está a destruir a sociedade americana e o Ocidente, mas, como é habitual, a argumentação em defesa de tal tese é fraca ou mesmo secundarizada, como se bastasse execrá-lo.

Um dos argumentos a que mais frequentemente recorrem consiste em acusar o movimento Woke de, sobretudo através das redes sociais, cancelar pessoas cujas palavras ou atos, por um qualquer motivo, são considerados politicamente incorretos; fragilizando desse modo o seu prestígio e influência. Mas, mesmo aceitando-se que tal seja verdade, se bem repararmos, estar-se-ia tão simplesmente a fazer aquilo que os críticos do movimento fizeram e continuam descaradamente a fazer. Com estes está tudo bem, mas com os negros? Com as mulheres e homens feministas? Com as minorias não heterossexuais? Como se atrevem?!

Portanto é legitimo deduzir que o objetivo do movimento anti woke é, como acima referido, normalizar o racismo e outras atitudes sociais discriminatórias, e desse nodo naturalizar as situações de dominação e opressão que passam pela desumanização do outro, do que é dominado e oprimido porque é inferior, e naturalmente precisa de tutela – o natural transforma-se assim em normativo, é o que deve ser, não o aceitar é ser anormal, é não seguir a norma.

Tudo isto para concluir que basicamente o movimento anti woke é um movimento reacionário, conservador na melhor das hipóteses - pretende congelar o passado para a ele retornar, mesmo se, entretanto, se tiver procedido a algum aggiornamento


domingo, 10 de setembro de 2023

 

Movimento WOKE - Algumas reflexões.  

O termo “woke”, cunhado na década de 30 do século passado e recuperado recentemente, aquando do assassinato pela polícia de Michael Brown, que catapultou para a ribalta o movimento “Black Lives Matter”, encontra-se intimamente associado ao conceito de justiça racial; designa um movimento ativista negro que acabou por abrigar também reivindicações de justiça social em sentido mais amplo, incluindo a luta anti sexista e a luta pelo reconhecimento LGTB.

‘Woke’ é um vocábulo que corresponde à forma pretérita  do verbo wake com o significado de acordar e que é traduzível por Acordei, no sentido de “tomei consciência”; fiquei alerta do … racismo profundo que impregna a sociedade norte americana, do sexismo e do preconceito contra outras orientações sexuais que não a heterossexual!

De facto, com os ataques violentos contra os negros pela Ku Klux Klan, organização supremacista branca terrorista, e com outras formas de violência que também atingem os outros grupos sociais atrás referidos, com a prevalência do preconceito como o atesta a violência policial extrema contra negros, ainda nos nossos dias, todo o cuidado é pouco e é preciso estar alerta, percebendo que os preconceitos raciais e sexuais se encontram impregnados nas estruturas da sociedade, constituem uma ameaça real e para serem erradicados tem de ser denunciados, de outra maneira manter-se-ão, pois  as próprias vítimas serão em simultâneo cúmplices.

Temos assim que o movimento woke é nas suas origens e fundamento um movimento político negro e isso é insuportável para os supremacistas brancos e para os nostálgicos do passado, que tudo fazem para o solapar.

 De facto, o movimento woke é alvo de ataques promovidos pela direita e sobretudo pela extrema direita, que paradoxal e desavergonhadamente o acusa de extremista, de radical e até de insano, com o objetivo de o descredibilizar.  Aqueles que o atacam fazem tábua rasa de toda uma memória de brutalidade extrema cometida precisamente por fações da direita contra a população negra, mesmo depois e na sequência da abolição da escravatura e no rescaldo da guerra da secessão (1861-1865).

Não vamos dizer que o movimento woke não cometa exageros, por vezes confundindo ‘alhos com bugalhos’, como se costuma dizer, mas o que são esses eventuais exageros quando comparados ao sofrimento de toda uma população infligido arbitrariamente, de forma tão brutal e durante tanto tempo? Estamos perante realidades incomensuráveis e só por ma fé se pode pretender ignorá-lo.

O movimento woke, enquanto movimento de luta e de resistência, é necessário, tem razão de existir, e é preciso ouvi-lo com a devida atenção e não o achincalhar porque tal atitude responde a propósitos inconfessáveis.

A extrema direita acusa este movimento de vários ‘pecados’, para mais justificadamente o derrubar. Vejamos então.

Ataca o movimento daquilo que designa de ‘marxismo cultural’, o que quer que isso seja; presumivelmente imagina-o como uma luta pela divulgação de ideias que mudariam a face da sociedade americana e a tornariam culturalmente recetiva à aceitação de uma estrutura económica e política comunista. Neste particular o ataque ao que designam por ‘teoria racial crítica’ é constante e tem por objetivo entre outras coisas evitar que nas escolas sejam revelados e abordados acontecimentos históricos representativos da opressão da população negra dos Estados Unidos. Quer dizer pretende-se preservar a narrativa dominante que, como qualquer pessoa dotada de honestidade intelectual mínima reconhece, é facciosa e enaltece as virtudes do vencedor a expensas da exposição de pretensos vícios e inferioridades do vencido.

Acusa-o ainda de  não respeitar a liberdade de expressão de pensamento, ao instaurar o que é politicamente correto e o que não o é, e ao promover o que chama de cultura do cancelamento em relaçao aos que não observam o politicamente correto; ignora-se assim  ostensivamente que a liberdade de expressão tem limites e que os discursos de ódio devem ser denunciados pelo menos quando expostos na esfera pública pois não são inofensivos,  bem ao contrário incitam à violência e ao terrorismo. A direita, e sobretudo a extrema direita, pretende continuar a usar, em nome da liberdade de expressão, que hipocritamente defende, linguagem ofensiva e discriminatória que alimenta o racismo e o sexismo estruturais persistentes na sociedade, como se tivesse todo o direito de o fazer, como se fosse algo normal e fosse antidemocrático impedi-lo. Ora devíamos ter memória histórica: normalizar o racismo e o sexismo, isto é tornar normal a expressão de sentimentos racistas e sexistas, é o primeiro degrau para garantir a persistência da supremacia branca e da dominação masculina; em contrapartida, pretender inculcar a ideia de que combater o racismo, o sexismo e fenómenos afins é algo anormal, promovido por extremistas e radicais, é procurar alimentar a ideia de que se está a atacar os homens brancos heterossexuais - as  novas vítimas do século XXI.

Assim, é legitimo concluir que, quando políticos e outros setores acusam o movimento woke de extremismo e de insanidade, estão, sem o dizerem diretamente, a expressar o preconceito racista que alimentam, e o eleitorado racista percebe-o de imediato e fideliza-se. É uma maneira, em minha opinião, infame de baterem naqueles que, às vezes desastradamente, é certo, procuram a justiça social que lhes continua a ser negada, e representa nítida falta de memória histórica do que o país fez aos negros e da reparação que tarda em lhes conceder.

A existência de um ativismo de resistência negra faz todo o sentido, se aceitarmos que a justiça social não é uma palavra vã.  Claro que nesta altura do campeonato já muito boa gente tem a cabeça feita pelo neoliberalismo – nos antípodas do marxismo cultural acima referido -  no sentido de nem sequer entender o conceito de justiça social pois apenas percebe que é: ‘cada um por si e Deus por todos’ – uma espécie de retorno contemporâneo ao estado de natureza que - julgava-se – teria ficado lá para trás!

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

 O capitalismo na fase neoliberal

A transição do capitalismo para a fase neoliberal ocorreu nas últimas décadas do seculo XX; essa transição, embora já anteriormente na forja, coincidiu com a implosão da União Soviética finalizada em 1991, que pôs termo ao mundo bipolar, e permitiu a  instauração de um mundo unipolar sob a hegemonia dos Estados Unidos da América.

 Com essa hegemonia, os norte americanos, mais do que nunca, conseguiram impor unilateralmente os seus interesses sobre as mais diversas regiões do globo. Um dos instrumentos de relevo para a prossecução dessa política foi a manutenção da Nato, seu braço armado, e sua expansão para leste, até às fronteiras da Rússia, coisa que parecia já não se justificar e que informalmente fora garantido que não ocorreria. Uma vez extinto o pacto de Varsóvia, o espectável seria que o pacto NATO lhe seguisse as pisadas. Mas tal não só não aconteceu como se aproveitou para lhe aumentar o alcance.

Curiosamente, ou não, a nova potência hegemónica, longe, de garantir a paz no mundo, estimulou, de forma indireta, e interveio diretamente em diferentes conflitos bélicos em diversas áreas do globo, dos quais os mais renomados pelos piores motivos foram:

·        O Afeganistão (finais de 2001), contra os talibãs, que anteriormente por motivos maquiavélicos tinha ajudado a florescer, quando os Russos invadiram este país;

·        O Iraque (2003), que foi invadido sob o pretexto de exportar a democracia para tais paragens, mesmo sem o beneplácito da ONU, e foi destruído e ‘saqueado’;

·        E a Síria (2014), de onde até hoje os E.U. continuam a rapinar o petróleo nas áreas sob sua ‘proteção’.

Mas também intervieram notoriamente em diversos países promovendo/respaldando golpes militares que derrubaram governos cujas políticas colidiam com os seus interesses; neste caso a América do sul foi a vitima mais causticada; de citar o golpe militar no Brasil em 1964 que impôs ao país uma ditadura militar; no Chile em 1973 que derrubou Salvador Allende, democraticamente eleito; na Argentina com o derrube de Isabel Péron, substituída por uma junta militar, golpe operado com o conhecimento prévio e o aval dos Estados Unidos. Estes golpes foram a porta de entrada do neoliberalismo nos respetivos países.

Por outro lado, e seguindo uma outra estratégia, o FMI prestou ajuda a países com dificuldades de endividamento, empolado pelas políticas fiscais norte-americanas de alta das taxas de juro dos empréstimos em dólares, que catapultaram as dívidas desses países para a ‘estratosfera’. A contrapartida a essas ajudas foi sempre a obrigatoriedade de adoção de medidas neoliberais tais como privatizações, mesmo em setores estratégicos, cortes nos gastos dos Estados em serviços sociais, e diminuição de direitos trabalhistas.

Curiosamente, o neoliberalismo, que emergira triunfante com a promessa de desenvolvimento económico, acabou por corresponder a um período de crises sucessivas do capitalismo, com início em meados da década de 70 do século passado - choque do petróleo - e com o ápice na crise do subprime de 2008 com epicentro nos Estados Unidos. Hoje, já com perspetiva histórica, podemos concluir que a acumulação capitalista que alimenta o sistema e seus beneficiários foi obtida desta vez, de forma perfeitamente nítida, através de guerras e golpes militares e da apropriação de recursos de países da periferia do sistema.

Quer dizer que no plano económico o neoliberalismo acabou por corresponder a um fracasso porque não encontrou instrumentos para desenvolver a economia e então acabou por operar transferência de recursos dos países pobres para os países ricos sem qualquer benefício para os povos dos primeiros e com benefícios muito discutíveis para os dos segundos, os quais, todavia, mesmo assim tiveram menos razões para se queixar do capitalismo e passaram a queixar-se, muito abstratamente, das suas próprias elites corruptas, e, mais concretamente, dos imigrantes, de grupos racializados e de outros grupos vulneráveis, isto é, os sacos de pancada do costume.

Assim, pode dizer-se que o capitalismo na fase neoliberal entrou num período recessivo que só conseguiu mascarar porque, por um lado, os Estados Unidos, a locomotiva do sistema, enveredaram por um caminho de guerras e golpes violentos constantes, visando a expolição das riquezas e recursos de outros países, invocando pretextos espúrios. Quer dizer substitui-se, melhor, complementou-se a exploração direta dos trabalhadores nos seus países de origem, pela exploração indireta através da promoção de guerras e respetiva apropriação de riquezas e recursos dos países derrotados. Por outro lado, aproveitando a era digital, procedeu-se a uma globalização capitalista deslocando a produção industrial para países periféricos de mão de obra mais barata e com legislação protetora de pessoas e ambiente de baixa intensidade, um outro processo de exploração e acumulação de capital.

Nos diferentes casos, se repararmos houve sempre exploração do trabalho e de quem trabalha que ou foi bucha para canhão ou viu as suas condições de vida agravadas porque no capitalismo não são os ricos que pagam as crises do sistema, arranjam sempre maneira de apresentar a fatura a outros, nomeadamente ao próprio Estado cuja intervenção em tempos ditos normais rejeitam, mas a que não tem pudor de recorrer quando se veem em apuros. 

Porem a criatividade neoliberal não ficou por aqui, e entrou-se também numa fase designada de capitalismo financeiro em que o próprio dinheiro se tornou uma mercadoria. Mais uma vez houve e há exploração direta e indireta dos trabalhadores que são convidados a endividar-se a fim de pagarem um produto que inicialmente custaria x por um valor que corresponde, acrescidos juros bancários, a 3 ou mais vezes x; criatividade não falta ao sistema para esfolar as pessoas, obrigando-as a viverem para trabalhar e não a trabalharem para viver – um verdadeiro absurdo, puro Ionesco.

Alem disso, nesta fase de capitalismo financeiro o dinheiro e os bancos, para além de financiarem a produção e o consumo, entram sobretudo num ciclo em que o dinheiro gera mais dinheiro através de movimentos especulativos sabiamente geridos por quem percebe da poda e manuseia papeis: as ações nas bolsas de valores que podem subir ou descer de maneira vertiginosa, ‘correrias’ essas desencadeadas por rumores, boatos, etc. um autêntico teatro de loucos…

Quer dizer, o centro da economia deixa de ser a produção de bens necessários à vida e existência humana, com todas as vicissitudes que conhecemos, e passa a ser a especulação do dinheiro que gera dinheiro. O que mostra bem como no centro da economia capitalista se encontra não a produção de riqueza, mas a acumulação, que aliás foi o seu ponto de partida e que acaba por ser, sob outra forma, o seu ponto de chegada; assim a acumulação capitalista, chamando os bois pelos nomes, é uma autêntica forma legalizada de gatunagem.

Na fase neoliberal do capitalismo uma outra inovação, chamemos-lhe tendência, seguida com maior ou menor zelo em diferentes países, foi atribuir ao Estado um papel menor na proteção dos direitos dos indivíduos - educação, saúde, segurança social - sob pretexto de garantir a liberdade individual e em simultâneo abrir ao capital privado a exploração de áreas de produção de serviços e respetivos lucros, frequentemente sob a alegação hipócrita de que o Estado não seria eficiente. No fundo mais uma outra estratégia de acumulação.

Também na era neoliberal acentuou-se a centralidade do mercado, propondo-se insistentemente o modelo de mercado e de mercadoria a áreas que até então tinham  escapado: a escola, o hospital, o setor da habitação, alega-se,  devem ser entendidas como empresas e devem ser geridas na perspetiva do aumento da produtividade e do lucro, esquecendo que escolas, hospitais e habitação condigna  não tem de dar lucro porque a educação, a saúde e a sobrevivência das pessoas são já valores em si, são um investimento nas pessoas, logo não têm nem devem estar submetidas à lógica da lucratividade e  da gestão empresarial.

Por outro lado, o cidadão é reduzido ao estatuto de consumidor – tudo gravita a volta do mercado – vender, comprar, lucrar são as palavras chave. Há o mercado de trabalho e o mercado de capitais, e ainda o mercado de consumidores que é preciso disputar através da publicidade, há a reação dos mercados a que é preciso estar atento, há o empreendedorismo, há o empresário de si mesmo, enfim, tudo expressões que ouvimos no nosso quotidiano e simbolizam bem a revolução operada.

Contudo, todas estas inovações têm-nos feito esquecer que, afinal, o neoliberalismo procura cumprir uma promessa antiga da democracia liberal e do liberalismo: reduzir de facto e não apenas nas intenções o papel do Estado ao de Estado mínimo, se possível apenas ocupado com questões de segurança; exércitos e polícias e com questões jurídicas, litígios que podem surgir entre os cidadãos. O famoso estado guarda-noturno, imprescindível aos ricos e poderosos. Por isso quando falamos e enchemos a boca com a democracia liberal, que opomos orgulhosamente às autocracias, devíamos ter o cuidado de dizer: Democracia Liberal Capitalista e aí talvez começassem a soar campainhas, alertando para a contradição nos termos que torna esta expressão um autêntico oxímoro.




  O que é a democracia liberal? – uma resposta breve Se quiséssemos sintetizar numa expressão breve o que é a democracia liberal poderíamo...