terça-feira, 1 de agosto de 2023

 

Deve estimular-se um populismo de esquerda?

A esquerda, em nome da razão e da racionalidade, tem dificuldade em aceitar movimentos populistas de esquerda, cujo denominador comum com os de direita é o apelo enfático aos sentimentos do auditório e a promoção de lideres carismáticos de pendor autoritário. Ora, o assunto merece alguma atenção, se considerarmos, com Chantal Mouffe, que:

As ideias corretas não são suficientes (…), as ideias só têm força quando encontram afetos. Na política, não basta ter um programa bem elaborado. Para gerar lealdade e induzir as pessoas a agirem, ela precisa transmitir afetos que ressoem com seus desejos e experiências pessoais.[1]

Precisamente, Chantal Mouffe, consciente da importância da afetividade no  empenhamento político,  defende a tese da oportunidade e mesmo necessidade de se promoverem movimentos populistas de esquerda que basicamente cumpram o objetivo de criar uma identidade coletiva, tão mais necessária quanto o individualismo neoliberal esfacelou o sentido de comunidade.

Mouffe começa por aceitar a premissa de que as massas populares tendem a dar a sua adesão a movimentos populistas na base não tanto da razão, mas de sentimentos mobilizadores, nomeadamente sentimentos de ódio, direcionados para todos aqueles que julgam responsáveis pela situação em que se encontram, e ainda de indignação, pela injustiça que vivem na própria pele, bem como de esperança, na espectativa de que seja possível fazer qualquer coisa, mudando o rumo e eliminando os fatores perturbadores. Há assim um universo vasto permeável ás promessas populistas.

Continuando o seu raciocínio, deduz que, se o único campo aberto for o do populismo de direita, esse campo vai absorver os descontentes que são muitos e a esquerda apenas irá aliciar aqueles poucos que ao fim ao cabo constituem uma mini elite intelectual capaz de compreender uma argumentação consistente.

Com base nesta premissa conclui que o populismo de esquerda deve responder a esta necessidade da vasta maioria da população, a fim de não a entregar de mão beijada à direita e suas manobras manipuladoras.

Apresenta pois o populismo de esquerda como uma espécie de estratégia capaz de captar a tendência popular para aderir a movimentos populistas que sem alternativa terão ampla liberdade para atuar já que respondem a uma necessidade das pessoas, nomeadamente das camadas mais vulneráveis.

Em síntese, a argumentação é de que se os movimentos populistas de direita jogam não só com a racionalidade, mas sobretudo com os afetos, sentimentos e emoções, impõe-se que a esquerda admita a importância destes e entre no jogo, com objetivos obviamente diferentes, reconhecendo duas coisas muito importantes, uma é que os afetos permitem criar nas massas populares um sentimento de identidade, sempre aglutinador e mobilizador; outra é que, sobretudo em tempos de crise, a generalidade das pessoas está mais interessada em segurança do que em liberdade e adere a líderes salvíficos, mesmo se estes assumem posturas autocráticas e ditatoriais.

Temos de reconhecer que a criação de uma forma coletiva de identificação - algo que a direita faz muito bem - é de facto indispensável na luta política; neste aspeto estabelecer uma separação nítida entre as elites e o povo comum funciona para a direita, mas deveria funcionar ainda melhor para a esquerda porque de facto permite opor as massas populares à elite dominante, particularmente os 0,01% que detém a riqueza (e são os donos do planeta que todos habitamos e que pela sua ganância pode ser destruído).

De facto, em períodos de crise profunda as pessoas são mais sensíveis, mais atraídas pelo valor segurança do que pelo valor liberdade, os fascismos percebem isso; ora a esquerda precisa de mobilizar esses sentimentos a seu favor; precisa de perceber que as populações têm necessidade de se sentirem seguras e protegidas pelo Estado, não permitindo que a direita hasteie com exclusividade estas bandeiras e as oriente no sentido mais reacionário. Tem de levar em conta que as pessoas podem ser racionais, mas o que as mobiliza não é a razão, são as paixões, são estas que incentivam a lutar por uma ideia, são estas que levam as pessoas a unirem-se e a criarem uma identidade própria que lhes confere força.

A esquerda é obviamente racionalista e julga que basta argumentar para convencer, julga, e bem, que vence quem convence, mas ignora que o convencimento passa por outros caminhos que não apenas o argumentativo.

Partindo desta base, Mouffe pergunta-se como será possível criar nas pessoas esperança, um sentimento positivo que as mobilize e identifica algumas etapas:

(1) Será preciso apresentar um projeto de mudança;

(2) Este tem de possuir alguma viabilidade e representar um progresso;

(3) Será necessário congregar boas vontades e uni-las nesse projeto.

Dá como exemplo um projeto em defesa do meio ambiente articulado com demandas sociais que se transforme num polo aglutinador, porque se conecta com a defesa da vida e da civilização e é compatível com a ideia de soberania nacional e dos valores da vida e da paz.

Apresentada esta posição cumpre-me referir as minhas dúvidas de que seja desejável estimular populismos de esquerda, mas deixarei esta reflexão para um próximo texto. Aí procurarei argumentar, com a consciência de que toda a argumentação é uma forma de investigação que, se for honesta, pode mesmo conduzir a conclusões diferentes das inicialmente assumidas.  



[1] Chantal Mouffe, “Não subestimem o populismo de esquerda”

 

3 comentários:

  1. Às vezes confundimos populismo de esquerda com comunicação eficaz. Veja-se o caso de Lula no Brasil atual. Não acho que o governo dele seja populista, as suas políticas têm alcance popular e o governo sabe comunicar esse alcance. Gonçalo

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  2. Agrada-me a ideia de um populismo de esquerda, mas para tanto seria preciso que a esquerda existisse associada ao povo. Ora, o povo vê na esquerda uma espécie de cobra de muitas cabeças, uma das quais é a do poder vigente. Seria fundamental que o PS assumisse de vez a sua natureza centralista e liberalista, num esforço autoregulador da sua essência. Na verdade, há que depurar a esquerda, reinventar o conceito. Assim, se ser de esquerda é de eesquerda é defender ideais de qualidade de vida da população e dos serviços públicos, aposto que não faltaria adesão popular. Depurar a esquerda, construir um novo ideário, uma plataforma de esquerda unida, e aí tínhamos nós o populismo de esquerda.

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  3. Penso que tanto o Gonçalo como a Ana Fale fazem comentário acertado, mas julgo que é urgente definir com precisão o conceito de populismo antes de continuarmos e vou tentar faze-lo brevemente.

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