domingo, 3 de setembro de 2023

 

Contributos para uma avaliação do “Populismo de Esquerda”

Retorno hoje à reflexão, que deixei em suspenso em anterior texto, sobre o designado “Populismo de Esquerda”, assumindo uma posição avaliativa que procurarei justificar.

Para compreender o populismo de esquerda parece-me necessário ter presente o papel que na esfera política ‘restou’ à esquerda, no rescaldo da implosão da União Soviética, ocorrida de forma completa e irreversível em fins de 1991.

Este evento – implosão da União Soviética - foi extremamente traumatizante para a esquerda internacional que, ao invés de estudar o fenómeno, procurar as causas reais da ocorrência e tentar divulgá-las o mais extensamente possível, fez exatamente o contrário, meteu a cabeça na areia e ficou refém de reflexões ideológicas que enfatizaram fundamentalmente duas coisas: a ausência de democracia e a ineficiência do socialismo. Essas reflexões nem sequer puseram em destaque o salto imenso  e o progresso inegável que ocorreu no país desde a revolução de 1917 até aos fins do século XX, apesar de todas as vicissitudes conhecidas, das quais a mais saliente foi a participação efetiva da URSS na segunda guerra mundial, vítima de uma brutal invasão e que perdeu mais de vinte milhões dos seus compatriotas, ao invés por exemplo dos Estados Unidos que só tardiamente entraram no conflito e mesmo assim circunscritos durante bom tempo à área do Pacífico, que nada sofreram internamente no seu território e que ainda por cima puderam lucrar com a economia de reconstrução da Europa e outras partes no pós guerra. Mas claro que tudo isto passou despercebido à grande maioria das pessoas, as quais em contrapartida puderam assistir aos filmes de Hollywood, que sempre enalteceram o papel dos estados unidos, e puderam assistir a “O Dia D” - desembarque na Normandia - protagonizado pelos bravos soldados norte-americanos. Quer dizer quando a guerra já estava ganha, muito por obra do tremendo esforço soviético, soaram trompetas e os heróis entraram em cena para colher os louros.

Mas voltemos à esquerda e à sua reação face à implosão da União Soviética. Fragilizada na sua possível argumentação a favor do socialismo, dado que no fim de contas o socialismo real dera com os burros na água, rendeu-se, genericamente falando, à democracia liberal e às suas potencialidades e passou a culpar o neoliberalismo por a desvirtuar; nesse contexto, para captar apoios imprescindíveis à sua manutenção enquanto farol político e face à lenta e penosa decadência e erosão dos partidos comunistas, procurou construir-se como populismo de esquerda, por contraposição ao populismo de direita que navegava já a todo o vapor. Isto ocorreu sobretudo no seculo XXI sobretudo a partir da crise de 2008, embora tivesse havido experiências populistas de direita e de esquerda ainda no decurso do seculo XX.

O que vai querer então o populismo de esquerda? Propõe-se um objetivo elevado: radicalizar a democracia, ir às suas raízes, e, aceitando os princípios da democracia liberal tentar seriamente cumprir o projeto democrático. O problema está em saber se foi capaz de criar condições para o alcançar ou se, laborando num erro inicial, o comprometeu irremediavelmente.

O que se constatou foi que os populismos de esquerda então reconhecidos se revelaram movimentos pouco consistentes e embora em vários países até possam ter conhecido momentos de glória, de seguida feneceram sem deixar rastos, exemplos do Syriza, na Grécia e do Podemos, em Espanha. Talvez porque afinal os fundamentos e as bases teóricas em que se alicerçam entram em contradição com o que é ou se pretende que seja a esquerda.

Para começo de conversa, entendo que a esquerda tem de se basear numa análise materialista histórica e dialética dos fenómenos sociais e históricos porque até à data esta metodologia ainda não foi superada, isto é, ainda não apareceu outra que com ela rivalize em termos de cientificidade. Você pode consultar uma bola de cristal, pode partir de uma conceção heroica da história, pode dar guarida a análises de senso comum, que atenção não é o mesmo que bom senso, ou pode … tentar uma abordagem científica. Até ao momento a única disponível é o materialismo histórico - dialético. Como o pressuposto de que se parte é que qualquer pensador que se pretenda de esquerda acredita na ciência, apesar de todas as limitações que esta comporta, só lhe resta de momento esta metodologia, se não a seguir, não se pode aceitar que a sua análise seja de esquerda, será quando muito de pseudoesquerda. Penso que este é o caso do populismo de esquerda.

Não está em causa que o populismo de esquerda seja, ou melhor, pretenda ser, democrático, o que está em causa é que recorra a estratégias que vão viciar os resultados que pretende alcançar porque aceita os dados sem os interpretar corretamente. Precisamos ter presente que, diferentemente da teorização de Maquiavel, os fins não justificam os meios, porque, lá está, a dialética diz-nos que é preciso estar atento já que entre meios e fins a relaçao não é unívoca, de um só sentido, é dialética e pode acontecer que o meio utilizado altere a natureza do fim que se pretende atingir. Assim, mal comparado - mas não resisto à comparação, extremamente esclarecedora - quando os Estados Unidos invadiram o Iraque invocando o ‘nobre fim’ de matarem um tirano e de expandirem a democracia, a única coisa que expandiram foi o caos e a miséria, já que como parece óbvio, ninguém se torna democrata por “força das baionetas”, bem pelo contrário.

Claro que o populismo de esquerda é inclusivo e emancipatório, tem um discurso identitário, tudo coisas muito positivas. Mas uma análise materialista histórica revela que as pautas identitárias, por mais respeitáveis que sejam, não alteram estruturalmente a realidade social na qual a exploração está inscrita como pedra de toque. Podemos supor um mundo sem discriminação com base na raça, género, preferência sexual, ou outra, no qual permaneça a exploração dos seres humanos por outros seres humanos.  

Por outro lado, cumpre reconhecer que a esquerda, ainda não recuperada da catástrofe que foi a queda da união soviética com a derrocada do chamado socialismo real que, como acima referido - mas nunca é demais insistir - não estudou, nem explicou, acabou por aceitar tacitamente que não há alternativa ao capitalismo e que a luta deverá ser contra o neoliberalismo pela defesa daquilo que entende como verdadeira democracia liberal, sem mais uma vez se questionar se tal regime permite real democraticidade. Ora ao admitir que não há alternativa ao capitalismo, a esquerda ficou sem um autêntico projeto político mobilizador, o que em minha opinião explica a tentativa de se constituir, em desespero de causa, como um movimento populista, parecendo não perceber que a democracia liberal existe e é permitida apenas enquanto funcionar como simulacro para disfarçar o capitalismo. Muitos equívocos de uma só penada.

Ainda, de acordo com os teóricos do populismo de esquerda o que basicamente o define, enquanto populismo, é ser um movimento político que se constrói em torno da noção de povo em antagonismo com a de elite, sendo aquele o elo positivo da corrente e esta o elo negativo e existindo entre os dois uma relaçao antagónica. Teria isto em comum com o populismo de direita. Assim a elite seria corrupta, gananciosa e açambarcadora, caraterísticas de que o povo se eximiria. Ora logo à partida esta consideração moralista e maniqueísta vai ao arrepio da análise (objetiva) que o materialismo histórico supõe; assim, só a título de exemplo, podemos referir que a tendência para a corrupção e para corromper ou se deixar corromper está presente tanto no povo como na elite; deitar a culpa nos políticos e ignorar a estrutura económica capitalista e a estrutura social classista é perfilhar o ‘discurso do taxista’ e do senso comum mais raso.

Os populistas de esquerda parecem pensar que se as instituições democráticas-liberais funcionassem de verdade e não a favor das elites tudo correria sobre carris e, numa espécie de pensamento voluntarista, aceitam tacitamente que a política é independente da economia; ora tal é um erro e crasso que implica não entender que as instituições democráticas foram desenhadas para favorecer as elites, embora claro tudo seja devidamente disfarçado para que a intenção não seja conhecida. Que o povo em geral não o perceba é grave, mas compreensível, que os populistas de esquerda não o percebam é incompreensível e mesmo imperdoável. Sonhar que o chamado populismo de esquerda possa subverter a democracia liberal e transformá-la, não se percebe como, numa democracia radical é o equivalente a um sonho de uma noite de verão...

Assim parece-me mais realista aceitar e reconhecer que tanto o populismo de direita como o de esquerda são estratégias para atrair as pessoas e alcançar e manter o poder político, essas estratégias têm algo em comum: criam a condição, pré requisito, para a construção de uma audiência que lhes possa ser favorável e lhes permita alcandorar-se ao poder, para tal exploram mais os sentimentos do que a racionalidade a fim de construírem um povo contra uma elite, mobilizando sentimentos de ódio que como sabemos são sentimentos aglutinadores porque focam a  atenção das pessoas num objetivo comum a todas, nesse aspeto o de direita é mais bem sucedido porque dirige o ódio contra bodes expiatórios fáceis de identificar: os negros, os emigrantes, as feministas os LGTB que  simbolizam aquilo que é a pedra no sapato que o povo nunca aceitou, porque é presa fácil de preconceitos e tradições ancestrais que teimam em persistir no inconsciente coletivo.

Assim, falar em populismo de esquerda, defender o populismo de esquerda, é cair na ratoeira preparada pelo neoliberalismo, que é bastante hábil nestas manobras linguísticas. Seria mais acertado dizer: não há populismo de esquerda porque o populismo é isto, isto, e isto, e acabava a conversa; daí partia para uma análise séria da realidade com que estamos confrontados para diagnosticar os problemas a fim de encontrar as soluções possíveis. Tal implica que os partidos políticos que se pretendem de esquerda abandonem os chavões em que continuam a insistir e apostem na procura da verdade e na construção de uma argumentação e de uma retórica convincentes, definindo objetivos no curto e no médio prazo e lutando por esses objetivos. Claro que isto é mais fácil de dizer do que de fazer, mas é preciso começar por algum lado.  


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