Contributos para uma avaliação do “Populismo de Esquerda”
Retorno hoje à reflexão, que deixei
em suspenso em anterior texto, sobre o designado “Populismo de Esquerda”,
assumindo uma posição avaliativa que procurarei justificar.
Para compreender o populismo de
esquerda parece-me necessário ter presente o papel que na esfera política ‘restou’
à esquerda, no rescaldo da implosão da União Soviética, ocorrida de forma
completa e irreversível em fins de 1991.
Este evento – implosão da União Soviética
- foi extremamente traumatizante para a esquerda internacional que, ao invés de
estudar o fenómeno, procurar as causas reais da ocorrência e tentar divulgá-las
o mais extensamente possível, fez exatamente o contrário, meteu a cabeça na
areia e ficou refém de reflexões ideológicas que enfatizaram fundamentalmente
duas coisas: a ausência de democracia e a ineficiência do socialismo. Essas reflexões
nem sequer puseram em destaque o salto imenso
e o progresso inegável que ocorreu no país desde a revolução de 1917 até
aos fins do século XX, apesar de todas as vicissitudes conhecidas, das quais a
mais saliente foi a participação efetiva da URSS na segunda guerra mundial, vítima
de uma brutal invasão e que perdeu mais de vinte milhões dos seus compatriotas,
ao invés por exemplo dos Estados Unidos que só tardiamente entraram no conflito
e mesmo assim circunscritos durante bom tempo à área do Pacífico, que nada
sofreram internamente no seu território e que ainda por cima puderam lucrar com
a economia de reconstrução da Europa e outras partes no pós guerra. Mas claro
que tudo isto passou despercebido à grande maioria das pessoas, as quais em
contrapartida puderam assistir aos filmes de Hollywood, que sempre enalteceram o
papel dos estados unidos, e puderam assistir a “O Dia D” - desembarque na
Normandia - protagonizado pelos bravos soldados norte-americanos. Quer dizer
quando a guerra já estava ganha, muito por obra do tremendo esforço soviético,
soaram trompetas e os heróis entraram em cena para colher os louros.
Mas voltemos à esquerda e à sua
reação face à implosão da União Soviética. Fragilizada na sua possível
argumentação a favor do socialismo, dado que no fim de contas o socialismo real
dera com os burros na água, rendeu-se, genericamente falando, à democracia
liberal e às suas potencialidades e passou a culpar o neoliberalismo por a
desvirtuar; nesse contexto, para captar apoios imprescindíveis à sua manutenção
enquanto farol político e face à lenta e penosa decadência e erosão dos
partidos comunistas, procurou construir-se como populismo de esquerda, por
contraposição ao populismo de direita que navegava já a todo o vapor. Isto
ocorreu sobretudo no seculo XXI sobretudo a partir da crise de 2008, embora
tivesse havido experiências populistas de direita e de esquerda ainda no
decurso do seculo XX.
O que vai querer então o populismo
de esquerda? Propõe-se um objetivo elevado: radicalizar a democracia, ir às
suas raízes, e, aceitando os princípios da democracia liberal tentar seriamente
cumprir o projeto democrático. O problema está em saber se foi capaz de criar condições
para o alcançar ou se, laborando num erro inicial, o comprometeu irremediavelmente.
O que se constatou foi que os
populismos de esquerda então reconhecidos se revelaram movimentos pouco
consistentes e embora em vários países até possam ter conhecido momentos de glória,
de seguida feneceram sem deixar rastos, exemplos do Syriza, na Grécia e do
Podemos, em Espanha. Talvez porque afinal os fundamentos e as bases teóricas em
que se alicerçam entram em contradição com o que é ou se pretende que seja a
esquerda.
Para começo de conversa, entendo que a esquerda
tem de se basear numa análise materialista histórica e dialética dos fenómenos
sociais e históricos porque até à data esta metodologia ainda não foi superada,
isto é, ainda não apareceu outra que com ela rivalize em termos de
cientificidade. Você pode consultar uma bola de cristal, pode partir de uma conceção
heroica da história, pode dar guarida a análises de senso comum, que atenção
não é o mesmo que bom senso, ou pode … tentar uma abordagem científica. Até ao
momento a única disponível é o materialismo histórico - dialético. Como o
pressuposto de que se parte é que qualquer pensador que se pretenda de esquerda
acredita na ciência, apesar de todas as limitações que esta comporta, só lhe
resta de momento esta metodologia, se não a seguir, não se pode aceitar que a
sua análise seja de esquerda, será quando muito de pseudoesquerda. Penso que
este é o caso do populismo de esquerda.
Não está em causa que o populismo
de esquerda seja, ou melhor, pretenda ser, democrático, o que está em causa é
que recorra a estratégias que vão viciar os resultados que pretende alcançar
porque aceita os dados sem os interpretar corretamente. Precisamos ter presente
que, diferentemente da teorização de Maquiavel, os fins não justificam os meios,
porque, lá está, a dialética diz-nos que é preciso estar atento já que entre
meios e fins a relaçao não é unívoca, de um só sentido, é dialética e pode
acontecer que o meio utilizado altere a natureza do fim que se pretende atingir.
Assim, mal comparado - mas não resisto à comparação, extremamente esclarecedora
- quando os Estados Unidos invadiram o Iraque invocando o ‘nobre fim’ de
matarem um tirano e de expandirem a democracia, a única coisa que expandiram
foi o caos e a miséria, já que como parece óbvio, ninguém se torna democrata
por “força das baionetas”, bem pelo contrário.
Claro que o populismo de esquerda é
inclusivo e emancipatório, tem um discurso identitário, tudo coisas muito
positivas. Mas uma análise materialista histórica revela que as pautas
identitárias, por mais respeitáveis que sejam, não alteram estruturalmente a
realidade social na qual a exploração está inscrita como pedra de toque. Podemos
supor um mundo sem discriminação com base na raça, género, preferência sexual,
ou outra, no qual permaneça a exploração dos seres humanos por outros seres humanos.
Por outro lado, cumpre reconhecer
que a esquerda, ainda não recuperada da catástrofe que foi a queda da união
soviética com a derrocada do chamado socialismo real que, como acima referido -
mas nunca é demais insistir - não estudou, nem explicou, acabou por aceitar
tacitamente que não há alternativa ao capitalismo e que a luta deverá ser
contra o neoliberalismo pela defesa daquilo que entende como verdadeira
democracia liberal, sem mais uma vez se questionar se tal regime permite real democraticidade.
Ora ao admitir que não há alternativa ao capitalismo, a esquerda ficou sem um
autêntico projeto político mobilizador, o que em minha opinião explica a
tentativa de se constituir, em desespero de causa, como um movimento populista,
parecendo não perceber que a democracia liberal existe e é permitida apenas
enquanto funcionar como simulacro para disfarçar o capitalismo. Muitos equívocos de uma só
penada.
Ainda, de acordo com os teóricos do populismo de
esquerda o que basicamente o define, enquanto populismo, é ser um movimento
político que se constrói em torno da noção de povo em antagonismo com a de elite,
sendo aquele o elo positivo da corrente e esta o elo negativo e existindo entre
os dois uma relaçao antagónica. Teria isto em comum com o populismo de direita.
Assim a elite seria corrupta, gananciosa e açambarcadora, caraterísticas de que
o povo se eximiria. Ora logo à partida esta consideração moralista e
maniqueísta vai ao arrepio da análise (objetiva) que o materialismo histórico
supõe; assim, só a título de exemplo, podemos referir que a tendência para a
corrupção e para corromper ou se deixar corromper está presente tanto no povo
como na elite; deitar a culpa nos políticos e ignorar a estrutura económica
capitalista e a estrutura social classista é perfilhar o ‘discurso do taxista’
e do senso comum mais raso.
Os populistas de esquerda parecem pensar que se as instituições
democráticas-liberais funcionassem de verdade e não a favor das elites tudo
correria sobre carris e, numa espécie de pensamento voluntarista, aceitam
tacitamente que a política é independente da economia; ora tal é um erro e
crasso que implica não entender que as instituições democráticas foram
desenhadas para favorecer as elites, embora claro tudo seja devidamente
disfarçado para que a intenção não seja conhecida. Que o povo em geral não o perceba
é grave, mas compreensível, que os populistas de esquerda não o percebam é
incompreensível e mesmo imperdoável. Sonhar que o chamado populismo de esquerda
possa subverter a democracia liberal e transformá-la, não se percebe como, numa
democracia radical é o equivalente a um sonho de uma noite de verão...
Assim parece-me mais realista aceitar e reconhecer que
tanto o populismo de direita como o de esquerda são estratégias para atrair as pessoas
e alcançar e manter o poder político, essas estratégias têm algo em comum:
criam a condição, pré requisito, para a construção de uma audiência que lhes
possa ser favorável e lhes permita alcandorar-se ao poder, para tal exploram
mais os sentimentos do que a racionalidade a fim de construírem um povo contra
uma elite, mobilizando sentimentos de ódio que como sabemos são sentimentos
aglutinadores porque focam a atenção das
pessoas num objetivo comum a todas, nesse aspeto o de direita é mais bem
sucedido porque dirige o ódio contra bodes expiatórios fáceis de identificar:
os negros, os emigrantes, as feministas os LGTB que simbolizam aquilo que é a pedra no sapato que
o povo nunca aceitou, porque é presa fácil de preconceitos e tradições
ancestrais que teimam em persistir no inconsciente coletivo.
Assim, falar em populismo de esquerda, defender o
populismo de esquerda, é cair na ratoeira preparada pelo neoliberalismo, que é
bastante hábil nestas manobras linguísticas. Seria mais acertado dizer: não há
populismo de esquerda porque o populismo é isto, isto, e isto, e acabava a
conversa; daí partia para uma análise séria da realidade com que estamos
confrontados para diagnosticar os problemas a fim de encontrar as soluções possíveis.
Tal implica que os partidos políticos que se pretendem de esquerda abandonem os
chavões em que continuam a insistir e apostem na procura da verdade e na construção
de uma argumentação e de uma retórica convincentes, definindo objetivos no
curto e no médio prazo e lutando por esses objetivos. Claro que isto é mais fácil
de dizer do que de fazer, mas é preciso começar por algum lado.
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