Para percebermos a atração das massas
pelo fascismo
Wilhelm Reich em A psicologia de
massas do fascismo (1933) defende a tese de que as massas - os seres humanos
enquanto coletivo, mais ou menos indiferenciados - têm uma tendência acentuada
para se colocarem sob a autoridade de alguém que percebem como mais poderoso e,
em boa verdade, lidam mal com a autonomia. Kant, século XVIII, um dos filósofos
do Iluminismo, também já o tinha percebido.
Autonomia implica liberdade, mas
liberdade pressupõe correr riscos e o risco exige coragem para enfrentar a
adversidade e aceitar a derrota pois nem tudo corre sempre bem; ora a coragem é
uma virtude muito deficientemente distribuída e as pessoas preferem sentir que
não são responsáveis pelo que corre mal; gostam de lançar a responsabilidade sobre
o outro; gostam de se colocar sob a proteção de um outro numa atitude de
subserviência que dá oportunidade a que se demitam do exercício da liberdade.
Segundo Reich é, pois, preciso
atentar na natureza humana para compreender o porquê da atração das massas pelo
fascismo, mesmo se, dadas as suas condições objetivas de vida, fosse espectável
que assumissem uma atitude antifascista. Neste sentido Reich considera que para
perceber os fenómenos históricos é preciso também atentar nos fatores
subjetivos.
Para compreender o
fascismo teremos então de problematizar a natureza humana e nesta de identificar
os traços mais persistentes; de entre esses, Reich destacou a atração pela
autoridade e a tendência para o misticismo. Aceitando-se esta perspetiva sobre
a natureza humana, somos levados a rever, ou pelo menos a reinterpretar, a
conceção hobbesiana do ‘homem lobo do homem’; de facto o homem, naturalmente
predador, até pode atacar o outro, mas perante o mais forte, muitos acobardam-se e tendem a colocar-se na sua
dependência; parece que à liberdade preferem a segurança e ficam facilmente
reféns do espírito de manada.
Se não percebermos isto
não percebemos o fascismo nem a atração que exerce sobre as massas, e do mesmo
modo não percebemos que não se vence o fascismo enquanto não se verificar uma
evolução na própria espécie humana que durante milhares de anos adorou ídolos,
acreditou em divindades e em milagres, e se submeteu ao mais forte,
comportamentos que conferiam um sentimento de segurança a seres que se
percebiam demasiado frágeis para ousarem
duvidar, para ousarem saber a verdade. O
“sapere aude” de Kant, o ‘atreve-te a conhecer’, o ‘ousa saber’, não foi nunca
o lema das massas.
A explicação adiantada
por Wilhelm Reich para se compreender o fascismo e o fascínio que desperta nas
massas é muito interessante e tem poder persuasivo; parte da constatação de que
o psiquismo humano não teve como não refletir a sociedade autoritária
patriarcal na qual os seres humanos viveram e em boa medida continuam a viver e
que explica fenómenos de todos conhecidos como o colonialismo, o racismo, a
misoginia, numa palavra a exploração dos seres humanos por outros seres
humanos, apoiada em sistemas de ideias
que a justificam. Estes fenómenos, segundo Reich, só foram possíveis porque o
caráter do ser humano foi moldado para aceitar a dominação e para considerar
natural a dicotomia dominante/dominado, explorador/explorado que, com nuances, tem
vigorado através dos séculos e dos milénios.
De acordo com a sua
perspetiva, durante milhares de anos os seres humanos foram submetidos à
exploração, à subjugação racial, à discriminação de género através de
condicionamentos sociais fortíssimos, com recurso a sistemas de recompensa/punição.
Nesse contexto, a estrutura psíquica das massas que suportaram tudo isso
tornou-as totalmente dependentes da autoridade, incapazes de liberdade e
propensas ao misticismo, que aqui funcionava como fuga imaginária da situação
de miséria, não apenas física, mas também mental, em que viviam.
Não é obrigatório pensar
essa estrutura psíquica como algo inato, o condicionamento social e a
doutrinação, nomeadamente através das religiões, são suficientes para explicar
a sua emergência e continuidade; mas explicar não é mudar, e, enquanto nada se
fizer, ela permanecerá porque a sua raiz é profunda e antiquíssima. Para a
mudar será preciso reestruturá-la, dar-lhe uma nova configuração.
Assim, a reestruturação do
psiquismo humano exige por um lado condições materiais, objetivas, que a tornem
viável, e, por outro, implica que se estimule nos seres humanos o pensamento
critico e criativo, para que se apercebam dos processos a que têm estado submetidos,
e se consigam como que reprogramar; isto é, são requeridas também condições
subjetivas que apontam para um novo sujeito, uma nova subjetividade.
Enquanto não ocorrer tal
reestruturação do psiquismo humano, as massas continuarão permeáveis ao
fascismo porque precisamente este apela a sentimentos muito profundos que ainda
não foram extirpados, ainda são dominantes. Casos históricos recentes
constituem-se como evidência empírica desta asserção. Temos o exemplo de Donald
Trump nos Estados Unidos, que foi eleito presidente em 2016 e que contou com o
apoio de boa parte do operariado - classe média baixa. Esse apoio verificou-se
sobretudo nos estados do ‘cinturão da ferrugem’ (Rust Belt) que tinham sido
alvo de desindustrialização e deslocalização de empresas a partir da década de
oitenta do século XX.
Também Bolsonaro, no
Brasil, contou com o apoio de extratos da população – classe média e classe média
baixa - que deveriam em princípio rejeitá-lo.
Estes eventos históricos
recentes, com a ascensão da extrema direita de pendor fascista ao poder,
reforçam a ideia de que para perceber o fenómeno do fascismo e do apoio das
classes populares é decisivo não idealizar o ‘proletariado’, ’os trabalhadores’, e perceber quão problemático é contar
com a sua capacidade revolucionária; reforçam ainda a ideia, adiantada por
Reich, de que é preciso, como atrás referido, tomar em consideração não apenas
os fatores objetivos – condições de vida das populações - mas também os subjetivos – a sua
subjetividade, a sua estrutura psíquica – a sua maneira de sentir e de pensar.
É muito importante que a esquerda perceba
isto, porque no século XX, e continuo a seguir o pensamento de W. R, tendeu a
explicar o processo histórico através das lentes do materialismo histórico,
ferramenta fundamental que Marx disponibilizara, mas tendeu a aplicar o
materialismo histórico de forma mecanicista e não dialética e julgou que os
fatores objetivos, condições materiais e económicas, davam conta, isto é,
explicavam o que acontecia. Cometeram o erro de descurar os fatores subjetivos
e falharam completamente a compreensão do fascismo pois não perceberam que a
este corresponderam condições objetivas - condição económica dos trabalhadores
- mas também a maneira de ver destes, as soluções que imaginam para os
problemas, uma maneira mística e uma resposta falhada, como aconteceu com os
eleitores de Trump que, ao invés de
culparem o capitalismo, culpavam os imigrantes que lhes roubavam trabalho e
contribuíam para o declínio da América com a conivência, alegavam, da elite
letrada e endinheirada.
O caráter das pessoas também conta e
o caráter do operariado não deve ser mitificado, não são ‘o bom povo’, são um
povo injustiçado que tem sido explorado e continua a sê-lo muitas vezes através
precisamente da sua tendência para o misticismo, tipificado em slogans
proféticos como o celebre “Façamos a América grande de novo” (Make America
great again), de Trump, ou como “O Brasil acima de tudo; Deus acima de todos,”
proclamado por Bolsonaro. Num caso e no outro, convocam-se entidades míticas -
A América, O Brasil - e esquecem-se muito oportunamente os seres humanos
concretos de carne e osso, nada propondo no sentido de pôr termo à exploração e
à injustiça social.
Assim e resumindo, para compreender a
adesão das massas ao fascismo, fenómeno intrigante e paradoxal, é preciso
compreender a estrutura psíquica da classe média, em particular da classe média
baixa- vítima e cúmplice - que a uma análise mais realista revela ser preconceituosa,
facilmente manipulável, ávida de bodes expiatórios, com tendência para
mitificar e para aceitar mistificações. Só depois de a compreender será
possível começar a delinear estratégias de intervenção no sentido de a alterar
e reconfigurar. Ninguém diz que a tarefa é fácil, mas se não tentarmos nunca
vamos saber. Ousemos saber!
Muito interessante
ResponderEliminar* Nas democracias modernas uma parcela importante do eleitorado não tem tanto interesse por política e não tem coerência ideológica alguma.
ResponderEliminarOscilam a cada eleição, votando de acordo com fatores circunstanciais, sejam relativos às qualidades pessoais do candidato ou ao chamado voto económico, quando eleitores tendem a votar 'pela mudança' *
eu até costumo dizer aos familiares e amigos, vcs votam para a governança do país tal como estivessem votando para o vencedor do concurso do 'big brother' 😊
Sim, parece esquecer-se que, como o comprova a história recente, nomeadamente na primeira metade do século XX, o fascismo com a ideologia que o alimenta, atraiu multidões e os lideres foram adorados até se pretender oferecer-lhes o sacrifício extremo da própria vida.
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ResponderEliminarobs ... referência à publicação de, sábado, 06 de maio de 2023 às 16+06 horas