terça-feira, 16 de maio de 2023

 

Para percebermos a atração das massas pelo fascismo

Wilhelm Reich em A psicologia de massas do fascismo (1933) defende a tese de que as massas - os seres humanos enquanto coletivo, mais ou menos indiferenciados - têm uma tendência acentuada para se colocarem sob a autoridade de alguém que percebem como mais poderoso e, em boa verdade, lidam mal com a autonomia. Kant, século XVIII, um dos filósofos do Iluminismo, também já o tinha percebido.

Autonomia implica liberdade, mas liberdade pressupõe correr riscos e o risco exige coragem para enfrentar a adversidade e aceitar a derrota pois nem tudo corre sempre bem; ora a coragem é uma virtude muito deficientemente distribuída e as pessoas preferem sentir que não são responsáveis pelo que corre mal; gostam de lançar a responsabilidade sobre o outro; gostam de se colocar sob a proteção de um outro numa atitude de subserviência que dá oportunidade a que se demitam do exercício da liberdade.

Segundo Reich é, pois, preciso atentar na natureza humana para compreender o porquê da atração das massas pelo fascismo, mesmo se, dadas as suas condições objetivas de vida, fosse espectável que assumissem uma atitude antifascista. Neste sentido Reich considera que para perceber os fenómenos históricos é preciso também atentar nos fatores subjetivos.

Para compreender o fascismo teremos então de problematizar a natureza humana e nesta de identificar os traços mais persistentes; de entre esses, Reich destacou a atração pela autoridade e a tendência para o misticismo. Aceitando-se esta perspetiva sobre a natureza humana, somos levados a rever, ou pelo menos a reinterpretar, a conceção hobbesiana do ‘homem lobo do homem’; de facto o homem, naturalmente predador, até pode atacar o outro, mas perante o mais forte, muitos  acobardam-se e tendem a colocar-se na sua dependência; parece que à liberdade preferem a segurança e ficam facilmente reféns do espírito de manada.

Se não percebermos isto não percebemos o fascismo nem a atração que exerce sobre as massas, e do mesmo modo não percebemos que não se vence o fascismo enquanto não se verificar uma evolução na própria espécie humana que durante milhares de anos adorou ídolos, acreditou em divindades e em milagres, e se submeteu ao mais forte, comportamentos que conferiam um sentimento de segurança a seres que se percebiam demasiado frágeis  para ousarem duvidar, para ousarem saber a verdade.  O “sapere aude” de Kant, o ‘atreve-te a conhecer’, o ‘ousa saber’, não foi nunca o lema das massas.

A explicação adiantada por Wilhelm Reich para se compreender o fascismo e o fascínio que desperta nas massas é muito interessante e tem poder persuasivo; parte da constatação de que o psiquismo humano não teve como não refletir a sociedade autoritária patriarcal na qual os seres humanos viveram e em boa medida continuam a viver e que explica fenómenos de todos conhecidos como o colonialismo, o racismo, a misoginia, numa palavra a exploração dos seres humanos por outros seres humanos, apoiada em  sistemas de ideias que a justificam. Estes fenómenos, segundo Reich, só foram possíveis porque o caráter do ser humano foi moldado para aceitar a dominação e para considerar natural a dicotomia dominante/dominado, explorador/explorado que, com nuances, tem vigorado através dos séculos e dos milénios.

De acordo com a sua perspetiva, durante milhares de anos os seres humanos foram submetidos à exploração, à subjugação racial, à discriminação de género através de condicionamentos sociais fortíssimos, com recurso a sistemas de recompensa/punição. Nesse contexto, a estrutura psíquica das massas que suportaram tudo isso tornou-as totalmente dependentes da autoridade, incapazes de liberdade e propensas ao misticismo, que aqui funcionava como fuga imaginária da situação de miséria, não apenas física, mas também mental, em que viviam.

Não é obrigatório pensar essa estrutura psíquica como algo inato, o condicionamento social e a doutrinação, nomeadamente através das religiões, são suficientes para explicar a sua emergência e continuidade; mas explicar não é mudar, e, enquanto nada se fizer, ela permanecerá porque a sua raiz é profunda e antiquíssima. Para a mudar será preciso reestruturá-la, dar-lhe uma nova configuração.

Assim, a reestruturação do psiquismo humano exige por um lado condições materiais, objetivas, que a tornem viável, e, por outro, implica que se estimule nos seres humanos o pensamento critico e criativo, para que se apercebam dos processos a que têm estado submetidos, e se consigam como que reprogramar; isto é, são requeridas também condições subjetivas que apontam para um novo sujeito, uma nova subjetividade.

Enquanto não ocorrer tal reestruturação do psiquismo humano, as massas continuarão permeáveis ao fascismo porque precisamente este apela a sentimentos muito profundos que ainda não foram extirpados, ainda são dominantes. Casos históricos recentes constituem-se como evidência empírica desta asserção. Temos o exemplo de Donald Trump nos Estados Unidos, que foi eleito presidente em 2016 e que contou com o apoio de boa parte do operariado - classe média baixa. Esse apoio verificou-se sobretudo nos estados do ‘cinturão da ferrugem’ (Rust Belt) que tinham sido alvo de desindustrialização e deslocalização de empresas a partir da década de oitenta do século XX. 

Também Bolsonaro, no Brasil, contou com o apoio de extratos da população – classe média e classe média baixa - que deveriam em princípio rejeitá-lo.

Estes eventos históricos recentes, com a ascensão da extrema direita de pendor fascista ao poder, reforçam a ideia de que para perceber o fenómeno do fascismo e do apoio das classes populares é decisivo não idealizar o ‘proletariado’, ’os trabalhadores’, e perceber quão problemático é contar com a sua capacidade revolucionária; reforçam ainda a ideia, adiantada por Reich, de que é preciso, como atrás referido, tomar em consideração não apenas os fatores objetivos – condições de vida das populações -  mas também os subjetivos – a sua subjetividade, a sua estrutura psíquica – a sua maneira de sentir e de pensar.  

É muito importante que a esquerda perceba isto, porque no século XX, e continuo a seguir o pensamento de W. R, tendeu a explicar o processo histórico através das lentes do materialismo histórico, ferramenta fundamental que Marx disponibilizara, mas tendeu a aplicar o materialismo histórico de forma mecanicista e não dialética e julgou que os fatores objetivos, condições materiais e económicas, davam conta, isto é, explicavam o que acontecia. Cometeram o erro de descurar os fatores subjetivos e falharam completamente a compreensão do fascismo pois não perceberam que a este corresponderam condições objetivas - condição económica dos trabalhadores - mas também a maneira de ver destes, as soluções que imaginam para os problemas, uma maneira mística e uma resposta falhada, como aconteceu com os eleitores de Trump que,  ao invés de culparem o capitalismo, culpavam os imigrantes que lhes roubavam trabalho e contribuíam para o declínio da América com a conivência, alegavam, da elite letrada e endinheirada.

O caráter das pessoas também conta e o caráter do operariado não deve ser mitificado, não são ‘o bom povo’, são um povo injustiçado que tem sido explorado e continua a sê-lo muitas vezes através precisamente da sua tendência para o misticismo, tipificado em slogans proféticos como o celebre “Façamos a América grande de novo” (Make America great again), de Trump, ou como “O Brasil acima de tudo; Deus acima de todos,” proclamado por Bolsonaro. Num caso e no outro, convocam-se entidades míticas - A América, O Brasil - e esquecem-se muito oportunamente os seres humanos concretos de carne e osso, nada propondo no sentido de pôr termo à exploração e à injustiça social.

Assim e resumindo, para compreender a adesão das massas ao fascismo, fenómeno intrigante e paradoxal, é preciso compreender a estrutura psíquica da classe média, em particular da classe média baixa- vítima e cúmplice - que a uma análise mais realista revela ser preconceituosa, facilmente manipulável, ávida de bodes expiatórios, com tendência para mitificar e para aceitar mistificações. Só depois de a compreender será possível começar a delinear estratégias de intervenção no sentido de a alterar e reconfigurar. Ninguém diz que a tarefa é fácil, mas se não tentarmos nunca vamos saber. Ousemos saber!

4 comentários:

  1. * Nas democracias modernas uma parcela importante do eleitorado não tem tanto interesse por política e não tem coerência ideológica alguma.
    Oscilam a cada eleição, votando de acordo com fatores circunstanciais, sejam relativos às qualidades pessoais do candidato ou ao chamado voto económico, quando eleitores tendem a votar 'pela mudança' *
    eu até costumo dizer aos familiares e amigos, vcs votam para a governança do país tal como estivessem votando para o vencedor do concurso do 'big brother' 😊

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  2. Sim, parece esquecer-se que, como o comprova a história recente, nomeadamente na primeira metade do século XX, o fascismo com a ideologia que o alimenta, atraiu multidões e os lideres foram adorados até se pretender oferecer-lhes o sacrifício extremo da própria vida.

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    obs ... referência à publicação de, sábado, 06 de maio de 2023 às 16+06 horas

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