Populismo e
democracia liberal - porque chegamos onde chegamos sem vermos o boi à frente
dos olhos.
A democracia liberal tem demonstrado ser um edifício
frágil porque a dimensão liberal que assume entra em contradição com a natureza
democrática de que se reivindica; por outras palavras, entre democracia e
liberalismo existem tensões que dificultam o compromisso.
Estas fragilidades tornaram-se mais
evidentes a partir dos princípios do século XXI quando o neoliberalismo, apesar
de nos ter colonizado mentalmente, não conseguiu responder ao sentimento
persistente de mal-estar e de injustiça que se instalou, sobretudo nas chamadas
classes médias que sobrevivem com escassos recursos, numa espécie de pobreza
envergonhada; sim, porque há a outra, a dos que são mesmo pobres, sem direito a
vergonha.
Deste modo, tem-se vindo a assistir
a um acentuado desencantamento com o regime demoliberal (capitalista) pois este parece
não conseguir cumprir o que prometera, tornando-se alvo de movimentos
populistas que facilmente arregimentam pessoas para a causa.
Assiste-se hoje, em vários países -
na própria Europa, veja-se o caso da Hungria e da Polónia, mas também nos Estados
Unidos com Trump e no Brasil com Bolsonaro, como ainda na Turquia e India e
mais recentemente na própria Itália, - ao surgimento de governos populistas que
põem em causa as instituições democráticas, resumem a democracia a um nível
mínimo e atentam contra valores que julgávamos conquistados, defendendo
políticas de extrema direita - anti imigração, supremacismo branco, atentado ao
estado laico, autoritarismo, desrespeito
pelos direitos das minorias, etc.
Estes regimes populistas
manifestam-se em simultâneo contra a democracia e contra o liberalismo, ou para
ser mais precisa, reservam o liberalismo só para a esfera económica, a famosa
liberdade dos mercados, ficando oportunamente por explicitar o que é isso dos
mercados, quem são os mercados, quem os domina e a quem essa liberdade serve.
Ao fim ao cabo o que o populismo pretende
é um retorno ao passado que antecedeu a implantação das democracias liberais:
reintroduzindo a religião na política, retornando aos costumes e tradições
patriarcais, à intolerância para com o diferente, e, ao mesmo tempo, preservando
a galinha dos ovos de ouro para uma minoria, a aristocracia do dinheiro,
servida exemplarmente pelo liberalismo económico.
Se recuarmos ao chamado ‘antigo
regime’ das monarquias absolutas (séculos XVII e XVIII, vemos que então Igreja
e Estado fortaleciam-se reciprocamente, apesar de brigas episódicas; o Estado era personificado por monarcas
autoritários que não prestavam contas; as tradições e costumes alimentavam um modo
de viver patriarcal; a intolerância e o fanatismo eram a moeda corrente; e,
cereja no topo do bolo, a aristocracia e a recém emergente burguesia
abocanhavam os recursos existentes, obrigando o povo a trabalhar para essa
elite.
É quase apavorante ver como tudo
muda, e como ao mesmo tempo tudo tende a permanecer… Mas só consegue permanecer
porque a vasta maioria da população mundial, controlada por meios de
comunicação manipulados pela elite que em toda a parte é igual a si mesma, não
percebe a realidade, não consegue ter dela uma perspetiva crítica. E voltamos
novamente ao velho slogan, grito de guerra: para vencer é preciso convencer;
vence quem convence.
Retomando o fio do discurso, a
democracia liberal tem fragilidades que se encontram inscritas na sua própria
estrutura, não são conjunturais e, por isso, não tendo remendo possível, é fácil
ao populismo aproveitar essas fragilidades estruturais para a atacar
implacavelmente. É interessante porque eu, quando comecei a pensar nestes temas,
juguei que a democracia liberal era reformável, mas hoje alterei completamente
o meu entendimento da questão, hoje penso que o neoliberalismo primeiro e de
seguida formas de neofascismo são a consequência inevitável da democracia
liberal e da sua progressiva degradação, se no percurso nada se alterar de
profundo, se não houver um corte revolucionário. Mas os nossos políticos, mesmo
os de centro esquerda e até alguma esquerda aparentemente mais radical ainda
não perceberam isto e é preciso e urgente denunciá-lo.
A crise financeira de 2008 foi o
sinal decisivo de que algo estava a correr mal com o neoliberalismo triunfante,
desde a queda da União Soviética e consequente termo da ‘guerra fria’, que a
esquerda nunca se deu ao trabalho de explicar de tão traumatizada que ficou –
mas que tem uma explicação, teve causas, teve aproveitamentos miseráveis
subsequentes, etc.
Concomitantemente, a globalização
veio fazer uma coisa que até então não acontecera; até então os países mais
avançados do Ocidente tinham classes médias relativamente estáveis e um
operariado integrado e esperançoso, um estado de bem-estar social que
funcionava como segurança das populações. Neste contexto, a ‘acumulação
capitalista’ não afetava tão profundamente os nacionais dos países
desenvolvidos, pois era sobretudo obtida através do neocolonialismo, isto é, da
exploração indireta de regiões que antes tinham sido domínios coloniais. Mas a
partir sobretudo do momento em que a internet se começou a desenvolver e a
facilitar as comunicações – a chamada era da economia da informação – tornou-se
muito atrativo deslocalizar empresas para regiões periféricas ao sistema
capitalista onde a mão de obra era muito barata e o onde não havia nem regulamentação
trabalhista nem regulamentação climática. Obviamente em breve as consequências
fizeram-se sentir: o estado de bem-estar social, onde não foi desmontado, foi,
digamos assim, sucateado, o trabalho passou a gozar de escassos ou nulos
direitos, com o desmonte dos sindicatos, o que limitou drasticamente a
capacidade reivindicativa dos trabalhadores, as crises do sistema afetaram
sobretudo as classes médias, nomeadamente o operariado dos países ditos
desenvolvidos, como aconteceu de forma paradigmática nos Estados Unidos.
Todavia, as pessoas, na sua
generalidade, em vez de perceberem que eram mecanismos inerentes ao modo de
operar capitalista que estavam a provocar o seu empobrecimento e insegurança,
atribuíram tal desenlace à democracia política e aos políticos e tornaram-se presa
fácil dos movimentos populistas que ofereciam respostas triviais, direcionadas
ao senso comum mais básico, para os seus problemas. Mas, note-se, porque é
extremamente importante perceber isto, os populismos não punham nem põem
nunca em causa o sistema capitalista (claro que estamos a falar do
populismo de direita que é o que verdadeiramente deve ser chamado de populista),
e essa é em minha opinião o segredo da sua resiliência, o capitalismo já
percebeu que, se precisar, tem sempre um aliado - desconfortável é certo - poderoso mas que não o coloca em causa, bem
pelo contrário.
O descontentamento popular existe e
tem boas razões para ocorrer só que
essas razoes não foram corretamente interpretadas por aqueles que sofriam os
efeitos mais perniciosos da era da economia da informação, como higienicamente
era chamada - o neoliberalismo sempre foi muito bom com as palavras, escolhidas
a dedo para ludibriar as pessoas. Em simultâneo, internamente as políticas
fiscais atribuíam os défices excessivos às políticas de apoio às populações
mais desfavorecidas e em nome das contas públicas certas cometiam as tropelias
do costume que atingem sempre os mais vulneráveis. Deste modo, as desigualdades
sociais que durante algum tempo eram sobretudo escabrosas entre países ricos e
países pobres passaram a ser a moeda corrente a nível dos diferentes países,
aumentando extremamente o fosso entre os mais ricos e a maioria dos cidadãos.
Por outro lado, o facto de a ‘acumulação
capitalista’ ser feita através da exploração de recursos de outros países, exerceu
nestes forte pressão sobre as populações autóctones provocando enormes vagas de
emigração, por uma questão de sobrevivência, para os países mais ricos, nos
quais será depois fácil transforma-las em bodes expiatórios do descontentamento
dos mais desfavorecidos desses países – atente-se na ironia: pobres contra
pobres!!!
Neste contexto, até a própria
religião virou pomo de discórdia porque a faceta liberal do regime democrático
preconiza a tolerância e a aceitação de diferentes credos religiosos, mas as
populações afiliadas ao credo dominante veem com maus olhos essa atitude que
apelidam de permissiva, o mesmo acontecendo em relaçao as questões de género e
de preferência sexual. É sempre o ódio ao que é diferente que é mobilizador, e
então os populismos utilizam-no como meio de distrair as pessoas das
verdadeiras causas dos seus infortúnios.
Penso, pelo que acabei de enumerar, que
se percebe como foi criado o caldo cultural que explica por que chegamos onde
chegamos, ainda por cima sem vermos o boi à frente dos nossos olhos – para os
mais cegos, o boi neste caso é o sistema capitalista com a sua sede insaciável de
lucro, com a sua ganância desmedida, com o seu individualismo exacerbado. Só
gostava de poder desejar: paz à sua alma!
Um texto para ler e reler. Aprendo sempre alguma coisa com os seus textos. O preâmbulo é largo, mas necessário para se perceber como coexistem camadas sobre camadas de ideologias complementares, todas elas alicerçadas no empobrecimento das populações e no mau-estar social, a ser capitalizado para levar tudo ao fundo e, então, sugerir uma solução miracolosa ao povo. Acho que é isso mesmo que está a suceder agora. As nossas greves e a contestação social em geral atacam todo o edifício.
ResponderEliminarPopulismo e capitalismo coexistem com um mesmo fim. Que nos resta fazer para levar o governo, todos os governos, a terem uma atuação social e a deixar de favorecer o grande capital? Já não vamos a tempo ou isso é andar para trás?
Antes de mais, obrigada pelo seu estimulante comentário.
ResponderEliminarRespondendo à última parte da sua intervenção, ocorre-me dizer que desde o início da existência das democracias liberais, lá pelos fins do século XVII na Inglaterra (Revolução Gloriosa de 1688) e do século XVIII em França (Revolução Francesa), os governos praticamente só representavam a elite, não o povo, mesmo falando formalmente, porque só podia votar quem fosse proprietário e a maioria dos homens do povo e todas as mulheres estavam completamente excluídos. De modo que as primeiras reivindicações gravitaram à volta do chamado sufrágio universal, obtido para os homens no século XIX e para as mulheres, repare-se bem, a partir dos fins da segunda década do seculo XX. De modo que este fenómeno – luta pelo sufrágio- condicionou a que se pensasse a democracia em termos de direito de voto, sem se perceber - mais uma vez se constatam as consequências desastrosas do défice cognitivo – que quem se apresentava a votação eram representantes da elite e o problema estava sempre, como em certa medida ainda está hoje, em votar entre a e b sendo que a e b, com pequenas nuances, eram farinha do mesmo saco. Isto para dizer que o que é preciso denunciar aos quatro ventos é que os nossos governos atuais ou são convictamente defensores do sistema capitalista, porque socialmente pertencem às elites económicas, ou são reféns do sistema. Portanto as reivindicações de professores, médicos, enfermeiros etc., não podem perder de vista este facto, mas perdem porque ao fim ao cabo apenas querem mais algumas migalhas, não tem um projeto revolucionário. Por isso, em minha opinião, a convulsão social, que responde a exigências mais do que justas, o que pode é precipitar a ascensão dos fascismos; repare, em Portugal o PSD já fala em aliança governativa com o CHEGA. Mas também posso pensar, numa perspetiva mais determinista, que se calhar é necessário passar por essa fase, antes de se vomitar por inteiro um sistema que está a esgotar-se e que não é reformável. Isto se, na pior das hipóteses, outras contingências históricas não resolverem entretanto o problema de forma bem radical.