O capitalismo na fase neoliberal
A transição do capitalismo para
a fase neoliberal ocorreu nas últimas décadas do seculo XX; essa transição, embora já anteriormente na forja, coincidiu
com a implosão da União Soviética finalizada em 1991, que pôs termo ao mundo
bipolar, e permitiu a instauração de um mundo unipolar sob a hegemonia dos
Estados Unidos da América.
Com essa hegemonia, os norte americanos, mais
do que nunca, conseguiram impor unilateralmente os seus interesses sobre as
mais diversas regiões do globo. Um dos instrumentos de relevo para a
prossecução dessa política foi a manutenção da Nato, seu braço armado, e sua expansão
para leste, até às fronteiras da Rússia, coisa que parecia já não se justificar
e que informalmente fora garantido que não ocorreria. Uma vez extinto o pacto
de Varsóvia, o espectável seria que o pacto NATO lhe seguisse as pisadas. Mas
tal não só não aconteceu como se aproveitou para lhe aumentar o alcance.
Curiosamente, ou não, a nova potência hegemónica,
longe, de garantir a paz no mundo, estimulou, de forma indireta, e interveio
diretamente em diferentes conflitos bélicos em diversas áreas do globo, dos
quais os mais renomados pelos piores motivos foram:
·
O Afeganistão (finais de 2001), contra os talibãs, que
anteriormente por motivos maquiavélicos tinha ajudado a florescer, quando os
Russos invadiram este país;
·
O Iraque (2003), que foi invadido sob o pretexto de exportar a democracia para tais paragens, mesmo sem o beneplácito da ONU, e foi
destruído e ‘saqueado’;
·
E a Síria (2014), de onde até hoje os E.U. continuam a
rapinar o petróleo nas áreas sob sua ‘proteção’.
Mas também intervieram
notoriamente em diversos países promovendo/respaldando golpes militares que
derrubaram governos cujas políticas colidiam com os seus interesses; neste caso a América do sul foi a vitima mais causticada; de citar o golpe
militar no Brasil em 1964 que impôs ao país uma ditadura militar; no Chile em
1973 que derrubou Salvador Allende, democraticamente eleito; na Argentina com o derrube de Isabel Péron, substituída por uma junta militar, golpe operado com o conhecimento
prévio e o aval dos Estados Unidos. Estes golpes foram a porta de entrada do
neoliberalismo nos respetivos países.
Por outro lado, e seguindo uma
outra estratégia, o FMI prestou ajuda a países com dificuldades de
endividamento, empolado pelas políticas fiscais norte-americanas de alta das
taxas de juro dos empréstimos em dólares, que catapultaram as dívidas desses
países para a ‘estratosfera’. A contrapartida a essas ajudas foi sempre a
obrigatoriedade de adoção de medidas neoliberais tais como privatizações, mesmo em setores estratégicos, cortes nos gastos dos Estados em serviços sociais, e diminuição de direitos
trabalhistas.
Curiosamente, o neoliberalismo,
que emergira triunfante com a promessa de desenvolvimento económico, acabou por corresponder
a um período de crises sucessivas do capitalismo, com início em meados da
década de 70 do século passado - choque do petróleo - e com o ápice na crise do
subprime de 2008 com epicentro nos Estados Unidos. Hoje, já com
perspetiva histórica, podemos concluir que a acumulação capitalista que
alimenta o sistema e seus beneficiários foi obtida desta vez, de forma perfeitamente nítida, através de guerras e golpes militares e da apropriação de recursos de países
da periferia do sistema.
Quer dizer que no plano económico o neoliberalismo
acabou por corresponder a um fracasso porque não encontrou instrumentos
para desenvolver a economia e então acabou por operar transferência de recursos
dos países pobres para os países ricos sem qualquer benefício para os povos dos
primeiros e com benefícios muito discutíveis para os dos segundos, os quais,
todavia, mesmo assim tiveram menos razões para se queixar do capitalismo e
passaram a queixar-se, muito abstratamente, das suas próprias elites corruptas, e, mais concretamente, dos imigrantes, de grupos racializados e de outros grupos
vulneráveis, isto é, os sacos de pancada do costume.
Assim, pode dizer-se que o
capitalismo na fase neoliberal entrou num período recessivo que só conseguiu
mascarar porque, por um lado, os Estados Unidos, a locomotiva do sistema, enveredaram
por um caminho de guerras e golpes violentos constantes, visando a expolição
das riquezas e recursos de outros países, invocando pretextos espúrios. Quer
dizer substitui-se, melhor, complementou-se a exploração direta dos
trabalhadores nos seus países de origem, pela exploração indireta através da
promoção de guerras e respetiva apropriação de riquezas e recursos dos países
derrotados. Por outro lado, aproveitando a era digital, procedeu-se a uma
globalização capitalista deslocando a produção industrial para países
periféricos de mão de obra mais barata e com legislação protetora de pessoas e
ambiente de baixa intensidade, um outro processo de exploração e acumulação de
capital.
Nos diferentes casos, se
repararmos houve sempre exploração do trabalho e de quem trabalha que ou foi
bucha para canhão ou viu as suas condições de vida agravadas porque no
capitalismo não são os ricos que pagam as crises do sistema, arranjam sempre
maneira de apresentar a fatura a outros, nomeadamente ao próprio Estado cuja
intervenção em tempos ditos normais rejeitam, mas a que não tem pudor de
recorrer quando se veem em apuros.
Porem a criatividade
neoliberal não ficou por aqui, e entrou-se também numa fase designada de
capitalismo financeiro em que o próprio dinheiro se tornou uma mercadoria. Mais
uma vez houve e há exploração direta e indireta dos trabalhadores que são
convidados a endividar-se a fim de pagarem um produto que inicialmente custaria
x por um valor que corresponde, acrescidos juros bancários, a 3 ou mais vezes x;
criatividade não falta ao sistema para esfolar as pessoas, obrigando-as a
viverem para trabalhar e não a trabalharem para viver – um verdadeiro absurdo,
puro Ionesco.
Alem disso, nesta fase de capitalismo financeiro o
dinheiro e os bancos, para além de financiarem a produção e o consumo, entram sobretudo
num ciclo em que o dinheiro gera mais dinheiro através de movimentos
especulativos sabiamente geridos por quem percebe da poda e manuseia papeis: as
ações nas bolsas de valores que podem subir ou descer de maneira vertiginosa,
‘correrias’ essas desencadeadas por rumores, boatos, etc. um autêntico teatro
de loucos…
Quer dizer, o centro da economia deixa de ser a produção de bens
necessários à vida e existência humana, com todas as vicissitudes que
conhecemos, e passa a ser a especulação do dinheiro que gera dinheiro. O que
mostra bem como no centro da economia capitalista se encontra não a produção de
riqueza, mas a acumulação, que aliás foi o seu ponto de partida e que acaba por
ser, sob outra forma, o seu ponto de chegada; assim a acumulação capitalista,
chamando os bois pelos nomes, é uma autêntica forma legalizada de gatunagem.
Na fase neoliberal do capitalismo uma outra inovação,
chamemos-lhe tendência, seguida com maior ou menor zelo em diferentes países,
foi atribuir ao Estado um papel menor na proteção dos direitos dos indivíduos -
educação, saúde, segurança social - sob pretexto de garantir a liberdade
individual e em simultâneo abrir ao capital privado a exploração de áreas de
produção de serviços e respetivos lucros, frequentemente sob a alegação
hipócrita de que o Estado não seria eficiente. No fundo mais uma outra estratégia
de acumulação.
Também na era neoliberal acentuou-se a centralidade do
mercado, propondo-se insistentemente o modelo de mercado e de mercadoria a áreas
que até então tinham escapado: a escola,
o hospital, o setor da habitação, alega-se, devem ser entendidas como empresas e devem ser
geridas na perspetiva do aumento da produtividade e do lucro, esquecendo que
escolas, hospitais e habitação condigna não tem de dar lucro porque a educação, a
saúde e a sobrevivência das pessoas são já valores em si, são um
investimento nas pessoas, logo não têm nem devem estar submetidas à lógica da lucratividade e da gestão
empresarial.
Por outro lado, o cidadão é reduzido ao estatuto de consumidor – tudo gravita a
volta do mercado – vender, comprar, lucrar são as palavras chave. Há o mercado
de trabalho e o mercado de capitais, e ainda o mercado de consumidores que é
preciso disputar através da publicidade, há a reação dos mercados a que é
preciso estar atento, há o empreendedorismo, há o empresário de si mesmo,
enfim, tudo expressões que ouvimos no nosso quotidiano e simbolizam bem a
revolução operada.
Contudo, todas estas inovações têm-nos feito esquecer
que, afinal, o neoliberalismo procura cumprir uma promessa antiga da democracia
liberal e do liberalismo: reduzir de facto e não apenas nas intenções o papel
do Estado ao de Estado mínimo, se possível apenas ocupado com questões de
segurança; exércitos e polícias e com questões jurídicas, litígios que podem
surgir entre os cidadãos. O famoso estado guarda-noturno, imprescindível aos
ricos e poderosos. Por isso quando falamos e enchemos a boca com a democracia
liberal, que opomos orgulhosamente às autocracias, devíamos ter o cuidado de
dizer: Democracia Liberal Capitalista e aí talvez começassem a soar campainhas,
alertando para a contradição nos termos que torna esta expressão um autêntico
oxímoro.